Cidades Integrativas – de palcos de tragédias a cenários de regeneração
28 de junho de 2024Cataclismo (“kataklysmós”), vocábulo de origem grega, designa originalmente enchente, inundação. Em português, sua primeira utilização se referiu ao dilúvio universal. Com o passar do tempo, a palavra passou a ter sua utilização ampliada para significar eventos catastróficos de proporções colossais, como a queda do meteoro que levou à extinção dos dinossauros.
Num passado muito mais próximo, lembra o texto Cataclismos, de Adaubam Pires, Lisboa foi vítima de um episódio dessa natureza. O que atingiu a cidade em 1775 foi o somatório de três calamidades sobrepostas: um terremoto oceânico que, se imagina, tenha liberado uma quantidade de energia equivalente à explosão simultânea de 30 mil bombas de Hiroshima; o consequente tsunami (palavra – e fenômeno – até então inexistente no léxico local), que arrastou a cidade pelas portas do Rio Tejo em ondas de mais de 6 metros de altura; e a sucedente eclosão de inúmeros focos de incêndio entre as construções arrasadas que, queimando o que encontrou ao longo de cinco dias, reduziu muito do pouco que havia sobrado de Lisboa a desoladas cinzas. Registros da época demonstram a dificuldade de colocar em palavras tamanha e inédita destruição.
Sensação semelhante parece ter acometido os relatos, seja de atores locais, seja do que circulou na mídia nacional, dos eventos que se abateram no Rio Grande do Sul a partir do início de maio de 2024. Porto Alegre e região não são estranhas a enchentes devastadoras, guardando ainda vivas na memória – tanto simbólica quanto física – a destruição de 1941, e episódios mais recentes como os ocorridos no ano passado. Contudo, o cataclismo motivado pelo acúmulo das chuvas e ampliado por diversos fatores naturais e humanos, conforme se desvelava a sua aterradora proporção, nos trouxe a sensação de não encontrar palavras suficientes e adequadas para descrevê-lo.
Decorridas as semanas, e com as energias voltadas aos esforços de reconstrução, é inevitável o debate sobre em que bases as áreas devastadas serão reocupadas. E, se caminhos claros ainda não podem ser traçados, o mínimo do bom senso recomenda que se revisitem as formas e processos que facilitaram a materialização da tragédia no território. Talvez esse cataclismo inédito requeira, para sua paulatina superação, uma abordagem também inédita, que revisite o potencial dinâmico das cidades.
Uma das características da pós-modernidade é a diluição de fronteiras rígidas entre áreas do conhecimento. Uma das ciências que tem se notabilizado pela abertura a uma abordagem mais interdisciplinar e sistêmica é a medicina, da qual “emprestaremos” o termo integrativa. Em linhas muito breves, a medicina integrativa tem por premissa focar na saúde e na prevenção, não na doença; e no paciente em sua totalidade, não como um somatório de partes. A saúde não é apenas um fato biológico, mas uma condição ampliada para aspectos emocionais, sociais, mentais e espirituais. Em algumas linhas terapêuticas é, inclusive, um fenômeno interpessoal e transgeracional. Eventuais tratamentos são individualizados, e as responsabilidades por seu sucesso são partilhadas entre a equipe terapêutica e o paciente, que passa a ser agente da melhora em sua qualidade de vida.
O Jaime sempre colocava que “cidade não é problema, é solução.” Mas essa cidade não é “qualquer” cidade. Novas situações por vezes requerem novas palavras, e propomos que a cidade aqui defendida é uma Cidade Integrativa: aquela com foco na qualidade de vida, no desenvolvimento integral que compreende as dimensões não só territoriais, mas também sociais, econômicas, emocionais, culturais; aquela que não prescinde da participação ativa dos cidadãos e da integridade, competência e dignidade dos processos políticos e de gestão pública; aquela que reconhece os limites da nossa autossuficiência perante as forças da natureza e a necessidade, mostrada dolorosamente inescapável, de se respeitarem as condicionantes por ela delimitadas.
Uma das características mais marcantes da espécie humana é sua imensa capacidade de adaptação ao meio. Chegou a hora de melhor pensarmos como essa capacidade adaptativa pode ser aplicada ao meio urbano, para que sejam organismos promotores de um viver mais saudável e equilibrado, e menos o palco de devastadoras tragédias.
Paulo Kawahara e Ariadne dos Santos Daher
*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.