Cidades e felicidade… uma relação “analógica”?

27 de março de 2025

Imagine uma cidade que te convida para fora das quatro paredes do cotidiano — a dar uma caminhada no parque com amigos, a ir com as crianças ou com o animalzinho de estimação brincar numa praça, a fazer uma pausa e tomar um sorvete à beira-mar ou ao redor de uma fonte em uma tarde de calor. É um chamado simples, mas poderoso, que sussurra vida. Agora sinta o mundo digital te seduzindo para dentro – telas, redes sociais e notificações sem fim que, ao nos prometer conexão, frequentemente nos entrega isolamento e angústia, sequestrando (muitas vezes, à margem da nossa consciência) a química da felicidade do cérebro. 

Esse fisgar digital segue mecanismos neurológicos. A luz azul das telas bagunça nosso sono, mantendo o cortisol — o estresse — em alta, enquanto likes, bets e games nos oferecem picos de dopamina — a sensação de recompensa — que se esvanecem como fumaça. Estudos apontam que mais de 3 horas diárias diante de pixels podem subir o cortisol em 20%, enquanto um passeio na natureza o derruba. É uma montanha-russa emocional que nos desgasta, roubando a serotonina da calma e a ocitocina do convívio, e que nos lança em um bombardeio dopaminérgico de estímulos constantes. Sozinhos, diante de telas, podemos nos sentir à deriva, mas as cidades podem nos conduzir a portos mais seguros. 

Nem todas, claro. Há cidades, ou áreas em nossas cidades, que gritam infelicidade, onde o digital só amplifica o eco. Cidades mal concebidas e mal geridas, onde moradia, trabalho e lazer estão dissociados, onde os deslocamentos do cotidiano roubam horas de nossas vidas, onde a hostilidade dos espaços públicos mata o convívio, onde a natureza se faz ameaça e a beleza se faz ausente. A dimensão “analógica” aqui atua em detrimento da felicidade. 

Contudo, as cidades podem, no seu melhor, promover a felicidade tanto nos aspectos da forma urbana quanto naquilo que essa forma urbana possibilita, servindo de salvaguarda à armadilha química a qual o mundo digital pode nos induzir. Em tempo, o “analógico” não se opõe às conquistas da tecnologia, companheira da humanidade e que pode ser ferramenta de prosperidade, produtividade, conforto e inclusão.

Como visionário que foi, Jaime Lerner sabia disso, e seu pensamento e sua obra sempre enfatizaram a cidade como o cenário do encontro, ancoradas em espaços públicos que nos convidam ao convívio com a natureza, com a diversidade e ao exercício da coexistência. Muito do que lemos no seu livro “Acupuntura Urbana” trata disso, das possibilidades que a cidade tem de estimular nossos vínculos, nossas memórias (individuais e coletivas) e nossos afetos. Essa é também uma lição da história, em que praças, fontes, calçadões, entre outros compõem um vocabulário tanto vernacular quanto projetado dessa linguagem coletiva que é a cidade. A alma urbana está nestes recantos, em um entendimento que não é saudosismo, é cura.

Winston Churchill disse: “Nós moldamos nossos edifícios e depois eles nos moldam.” Sem enveredar por uma abordagem determinista, podemos pensar que a mesma metáfora vale para as cidades. Dê-lhes uma forma urbana equilibrada e espaços pautados pelas possibilidades salutares do humano e da natureza, e elas nos convidam à felicidade e à produção de seus hormônios. Dê-lhes aspereza e caos, e elas nos inclinam ao estresse e à alienação, piorado pelo vício contemporâneo digital da dopamina. Lerner nos ensinou a curar com o “analógico”, aquilo que viemos trabalhando na ideia das “cidades integrativas”. A ciência tem demonstrado de forma clara que o vício digital nos reprograma para a dependência, não para a plenitude, desmantelando o bem-estar da sociedade. Estudos como “The Anxious Generation” (“A geração ansiosa”), de Jonathan Heidt, conectam a saúde mental frágil de tantos de nossos jovens a essa armadilha; o World Happiness Report mostra que nações viciadas em telas são mais tristes. Observe sua cidade: ela te impulsiona pra fora ou te empurra pra dentro? Sem desconsiderar as conquistas da tecnologia, talvez a felicidade tenha um ritmo analógico… Deixe um pouco o celular e procure onde a cidade — e sua alegria — ganha vida!

Ariadne dos Santos Daher

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.

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Com base na experiência de Jaime Lerner e das equipes que com ele trabalharam, o Instituto Jaime Lerner almeja despertar uma consciência positiva sobre o potencial transformador das cidades e seu desenvolvimento sustentável, inclusivo e criativo. ([email protected])
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