Cidades doentes e seus marcadores

10 de outubro de 2024

O diagnóstico é a segunda coisa mais importante que há na ciência, em geral, e na medicina em especial. A segunda coisa, porque o tratamento e a cura são a primeira.

Os maiores aliados do diagnóstico, para além da competência e do conhecimento, são os marcadores, sinais que o corpo produz e que indicam uma disfunção, uma infecção, um problema médico qualquer.

A ideia de que o corpo possa avisar é, por si só, fantástica, mas o difícil mesmo é correlacionar um marcador qualquer com uma doença ou disfunção específica. É como procurar uma agulha que muda de forma, num palheiro que se movimenta constantemente. 

Se pensamos a cidade como um organismo vivo, podemos supor que os problemas da cidade se manifestem, também, na forma de marcadores. O corolário é que, identificando os marcadores, seja possível perceber uma disfunção e diagnosticar um problema qualquer, agudo ou crônico, nos estágios avançado ou preliminar.

Vários marcadores são conhecidos, como por exemplo o custo crescente dos lotes, fruto de uma doença bastante séria, a “síndrome do baixo coeficiente de aproveitamento”. Nos estágios mais avançados da doença, pode apresentar quadro agudo quando acompanhado de ”obrigatoriedade de afastamentos frontal e laterais”. Pode levar a um quadro irreversível quando potencializada por “limite de altimetria” desnecessários.

Outro marcador amplamente conhecido e visível a olho nu é o encarecimento sem fim dos apartamentos construídos. Embora tenha relação direta com os problemas acima, tem causas próprias, como o “desafio da ventilação natural para banheiros”, a “alergia da baixa densidade” provocada pela cota habitacional e a “intolerância ao código de obras”, que costuma provocar muita irritação e, eventualmente, náuseas.

Há ainda, dentre os marcadores mais relevantes e mais comumente observados, os engarrafamentos sem fim e o excesso de carros com apenas 1 passageiro, que se manifestam pela “manobra do retorno à direita”, da “síndrome do excesso de sinais de trânsito” e, sobretudo, pelo “drama da ausência de transporte sobre trilhos”, doença gravíssima que, se não tratada a tempo, leva a cidade a um estado terminal de degradação e paralisia.

No departamento de doenças terminais e tratamentos intensivos, a construção de conjuntos habitacionais de baixíssima qualidade e nos colares metropolitanos surge pela conjunção da maior parte das síndromes e doenças acima, e se manifesta em casos de descaso continuado por décadas. É tratável, mas exige medidas mais drásticas e tratamento intensivo. Empurrar com a barriga e abraçar o “mais do mesmo” costumam terminar em fratura social, pobreza crescente, PIB per Capita decrescente, sujeira, insegurança, falta de inovação, baixo astral e feiúra, muita feiúra.

Recentemente, especialistas se depararam com novos marcadores que, embora evidentes, ainda não foi possível correlacionar a uma doença específica, muito embora os seus efeitos e a degradação urbana estejam sempre presentes: viadutos, passarelas suspensas e quebra-molas.

O quebra-molas, doença tópica, parece indicar algum problema de ordem cognitiva ou mental, porque vem sempre acompanhada de “operações de trânsito” e uma infinidade de faixas dependuradas, placas de sinalização e radares.

E, apesar da ciência e da medicina de cidades já contarem com vasta bibliografia, testes duplo-cego padrão ouro e dados a perder de vista, grande parte dos gestores e legisladores urbanos continuam fazendo de conta que essa massa de conhecimentos não existe para continuar professando a mesma fé que professavam no início do século 20.  

Na gestão das cidades brasileiras, os “médicos” ainda usam preto, não lavam as mãos e estão proibidos de investigar o corpo humano por dentro; dados e evidências são descartados aos gritos de “blasfêmia” e “morte aos infiéis”. 

A fogueira do conhecimento vive acesa, pronta para receber o próximo herege que se manifeste em favor da densidade, do uso misto, da dispensa dos afastamentos, do aumento do coeficiente, ou que fale contra os ônibus, ou a favor do transporte público sobre trilhos.

O Brasil parou na Inquisição Urbana, e precisa torcer para que os novos prefeitos sejam mais inteligentes, mais estudiosos, mais bem acompanhados e mais bem influenciados.

Mas nós, cidadãos, também precisamos saber o que e como cobrar. Que 2025 traga os ventos da Renascença urbana ao Brasil.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.

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