“Eu não vim pra explicar. Vim para confundir.” – Chacrinha
Abelardo quase foi médico, mas uma frustrada viagem à Alemanha às vésperas da Segunda Guerra Mundial levou o pernambucano ao Rio de Janeiro e à carreira na comunicação, primeiramente como locutor da Rádio Tupi. A paixão pela percussão e o surgimento da TV pavimentam o caminho para o programa Rancho do Mister Chacrinha, em 1956, na TV Tupi. Houve ainda a Buzina do Chacrinha, a Discoteca do Chacrinha e o Cassino do Chacrinha.
Chacrinha estava lá quando a capital federal foi transferida do Rio para Brasília. Pôde observar o princípio do ocaso de uma metrópole de beleza incomparável, preparada e talhada para receber, hospedar e sediar o poder do Império e da República em meio a edifícios institucionais, sedes de empresas e companhias estatais, teatros, hotéis, parques, praças, restaurantes, museus e universidades.
Assistiu à mudança da burocracia estatal e daqueles que do dinheiro público vivem para o distante Planalto Central, mais escondido e mais distante que a Xangri-Lá. Assistiu ao êxodo do poder e do dinheiro enquanto revelava talentos nacionais.
Assistiu passeatas e protestos na Cinelândia, o umbigo do Brasil, no Centro do Rio, o tudo do Brasil, até que não assistiu mais nada disso, porque a Capital Federal já estava escondida do povo. Assistiu a ascensão de Brasília como uma espécie de realidade paralela, um metaverso, onde o controle central e total é possível, e funciona à perfeição.
Chacrinha soube do exército na entrada da Capital Federal para que apenas as pessoas autorizadas entrassem. Soube do aeroporto vigiado, das ruas limpas de pedestres e das praças abertas demais e sem qualquer traço de paisagismo e vegetação. Soube da ordem e progresso, setorização, controle, comitês centrais, arquitetura padronizada. Percebeu que aquela cidade não foi pensada para pessoas.
O chacrinha que me perdoe a cópia e a ousadia, mas “eu não vim pra explicar; vim para confundir”, e afirmar que Brasília é uma cidade concebida olhando para a conveniência de governos autoritários e ditaduras. Concebida para o controle e para quem acredita em planejamento central. Concebida para governos que têm a certeza absoluta de que o povo é incorrigível e irremediavelmente hipossuficiente, a ponto de suprimir a expressão individual e a espontaneidade no desenvolvimento das cidades. Para estruturas que saibam atribuir a moradia mais apropriada na quadra mais adequada para cada família. Para o pessoal do planejamento central que não tem qualquer dúvida de que uma cidade precisa ser totalmente setorizada por uso, adequadamente higienizado.
O isolamento do mundo real é parte fundamental dessa equação, e uma visão oposta à da cidade do Rio, cosmopolita, múltipla, inundada de povo e com muitas praças e largos para reunião de multidões e protestos. No Rio, são sobrados com comércio ao nível da rua e moradias nos andares superiores. São prédios de uso misto. É o uso institucional, comercial, empresarial e de serviços entremeados com residências, praças, museus, cafés, restaurantes, teatros e escolas.
É a cidade que não se esconde e não se isola; é o mar que provoca o carioca a um intercâmbio de ideias, culturas e modas, coisas que jamais existirão em Brasília e no Planalto Central (como também não existem em Belo Horizonte).
A civilização não perdoa a falta de arejamento e intercâmbio, e as capitais federais não devem estar isoladas, jamais. O preço a pagar são políticos que se portam – e agem – como semideuses, uma justiça que tende a se unir com a classe política e uma visão de cidades que tende a replicar esse modelo que, aos olhos dos donos do poder, funciona muito bem.
Brasília é uma cidade autoritária, idealizada para uma ditadura. Prove o contrário.
*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.