Canais de sensatez: o que Mendoza pode ensinar ao urbanismo brasileiro

18 de setembro de 2025

Em recente viagem a Mendoza, na Argentina, alguns elementos despertam a curiosidade de uma urbanista atenta. Além das calçadas largas, limpas, arborizadas, com fachadas ativas e uma iluminação pública invejável, um detalhe quase invisível rouba a cena: a drenagem.

A cidade possui um sistema de canais de irrigação e escoamento que conecta todas as árvores da calçada por estruturas subterrâneas com cerca de 1 metro de profundidade. São como pequenas valas contínuas, que margeiam as ruas e levam água para a base das árvores. Esse sistema tem origem pré-colonial, criado por povos indígenas para captar a água que descia dos Andes e trazê-la aos povoados. Com o tempo, foi aperfeiçoado pelos colonizadores e hoje é mantido com rigor pela prefeitura — inclusive com penalidades para quem bloquear os canais com lixo ou cimento.

O resultado é um sistema urbano resiliente em plena zona árida. Mendoza recebe menos de 250 mm de chuva por ano, mas consegue manter suas ruas arborizadas com mais eficiência do que metrópoles brasileiras que enfrentam enchentes frequentes. Aqui, a drenagem não é só técnica: é paisagem, cultura e senso comum.

O curioso é que esses canais funcionam como infraestrutura multifuncional. Drenam, irrigam, resfriam, organizam o espaço público. E fazem isso com simplicidade: concreto, gravidade e manutenção constante. Nada de mega obras bilionárias.

Enquanto isso, no Brasil, as soluções de drenagem urbana tendem a ser subterrâneas, caras, invisíveis e ineficientes. Enxurradas são vistas como problemas a esconder, e não oportunidades de reaproveitamento. A drenagem é pensada como exceção, e não como parte do cotidiano das calçadas.

O que Mendoza mostra, de forma elegante e discreta, é que o urbanismo de verdade começa no chão. Começa nas calçadas. Na forma como pensamos a água e a natureza como parte do tecido urbano, e não como ameaças ou obstáculos. Os canais de Mendoza não são apenas infraestrutura hídrica: são uma forma de ver a cidade.

Talvez a lição mais valiosa esteja justamente naquilo que o Brasil não fez: olhar para sua geografia, aprender com seus povos originários e adaptar técnicas simples ao contexto local. Em vez disso, repetimos fórmulas genéricas e enterramos bilhões no subsolo, sem criar sombra, frescor ou pertencimento.

O futuro das cidades — especialmente em tempos de crise climática — exige mais sombra, mais água, mais raízes. E talvez também mais canais.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.

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Arquiteta e urbanista, especialista em Gestão de Projetos e mestre em arquitetura pela UFRN. Atualmente é sócia da PSA Arquitetura em São Paulo (www.psa.arq.be) e da PROA Brasil (www.proabrasil.com), em Natal-RN.
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