O protocolo de posse presidencial deve atualizar seus símbolos e fazer o cortejo de transporte ativo para mostrar o compromisso com a justiça social e climática.
Vou estrear essa coluna com uma proposta!
O primeiro dia do ano foi marcado pela transição de governo e a posse presidencial, com transmissão ao vivo para todo o país. Entre momentos emocionantes e outros protocolares, o meu olhar como atuante de mobilidade e grande promotora da cultura do caminhar — que se contrapõem à cultura dominante centrada nos carros — se fixou, com incômodo, em um dos momentos icônicos e muito televisionado: o cortejo do novo presidente e seu vice no carro Rolls Royce da presidência.
Acredito que mesmo quem não atua com mobilidade, notou que enquanto o carro avançava, vários seguranças em ambos lados acompanhavam o ritmo do cortejo correndo, a pé. A cena, que beirou o ridículo, leva aos questionamentos sobre poder, masculinidade e veículos: por que perpetuar e insistir na simbologia do carro ao poder e o caminhar à subserviência?
Em pleno 2023, com a transição para um governo democrático e comprometido com a justiça social e o enfrentamento à crise climática, empreender o curto caminho (cerca de 1,7 km ou 22 minutos a pé) para o recebimento da faixa presidencial em um carro — que é poluente e símbolo das extrações e indústrias que mais destroem o meio ambiente, petrolífera, automobilística e mineradoras — se mostrou uma grande incoerência.
O carrocentrismo mata, por atropelamento, por poluição do ar, por insegurança, e até mesmo por dificultar o acesso a direitos básicos e ampliar as desigualdades. A exclusão de pessoas nas cidades, como crianças, que não podem desfrutar e se desenvolver no ambiente urbano de forma autônoma e tranquila, é a antítese da busca por justiça social — no Brasil a principal causa de morte de crianças de 0 a 14 anos são sinistros de trânsito, 29,9% por atropelamento (ONG Criança Segura e Ministério da Saúde, 2019).
É hora de criar símbolos que prosperem e propaguem a equidade, a busca por melhor qualidade de vida para todas as pessoas e a visão de futuro com respeito e ação no presente: e por isso, é hora de caminhar!
Imagina que lindo e simbólico se o quarteto presidencial fizesse o cortejo em modos ativos? Poderiam estar a pé e de bicicleta mostrando o início de uma fase de convite a estar na rua, de atenção e cuidado e de consciência coletiva das escolhas, dos impactos e do meio ambiente. Afinal seria a pé o melhor símbolo de proximidade e compreensão das pessoas, pois quem anda a pé — a maior parte das pessoas nas cidades brasileiras, cerca de 39% da viagens diárias são realizadas exclusivamente a pé (ANTP, 2018) — tem contato real com o mundo, como já cantou Luiz Gonzaga:
“No sertão de Canindé
Artomove lá nem sabe se é home ou se é muié
Quem é rico anda em burrico
Quem é pobre anda a pé
Mas o pobre vê nas estrada
O orvaio beijando as flô
Vê de perto o galo campina
Que quando canta muda de cor
Vai moiando os pés no riacho
Que água fresca, nosso Senhor
Vai oiando coisa a grané
Coisas qui, pra mode vê
O cristão tem que andá a pé”
(Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, 1951)
Assim, inauguro aqui com um pedido, que nossa atual ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina da Silva, puxe a pauta para não só a mudança do protocolo da posse presidencial que institua o cortejo a pé, mas também que caminhar e andar de bicicleta seja cada vez mais presente nos deslocamentos e na rotina da vida política.
(O decreto que trata dos protocolos de posse presidencial é do governo militar em 1972 e no artigo 37 descreve “O Presidente da República eleito, tendo a sua esquerda o Vice-presidente e, na frente, o Chefe do Gabinete Militar e o Chefe do Gabinete Civil, dirigir-se-á em carro do Estado, ao Palácio do Congresso Nacional, a fim de prestar o compromisso constitucional.”)
Em 2017 e 2018 realizamos o projeto Sentindo nos Pés, em São Paulo, em que levamos quem toma decisão para caminhar e avaliar a cidade desde a perspectiva cidadã — prefeito, secretárias/os e vereadores — e podemos atestar a importância de autoridades conhecerem o nível da rua para fazer políticas públicas mais justas.
Consciência no governo federal já há, em entrevista à Globonews, Janja Lula da Silva, comentou que nas definições da cerimônia da posse foi discutido que desfilar no carro não representava o povo e que cogitaram fazer o trajeto a pé. Não demorou muito, precisamente 9 dias para que caminhar tivesse que ser recorrido pelo governo em defesa das instituições democráticas.
Cidades caminháveis, justas e sustentáveis são feitas no simbólico também, pois é cultura, emoção e experiência são capazes de promover transformações profundas!
*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.