Belo Horizonte nasceu para ser a nova Capital das Minas Gerais, desbancando Ouro Preto, após séculos de bons serviços prestados.
Dizem que foi concebida inspirada por Paris e Washington, mas eu duvido.
Duvido muito, porque Paris localiza-se nas terras baixas ao longo do Rio Sena, fonte de comida, água e transporte, num traçado espontâneo, e sem a dificuldade natural de morros e acidentes naturais a superar.
Mesmo após a grande remodelação promovida pelo Barão Haussmann no século XIX, Paris conserva, ainda hoje, um traçado predominantemente irregular, mas com visadas e perspectivas espetaculares. Mais importante, manteve um conjunto harmônico, consistente e com grande qualidade urbana.
Já Washington, capital criada a pouco mais de duzentos anos, apresenta aquele desenho urbano mais ortogonal, fruto da forte influência das cidades espanholas no urbanismo norte americano. Apesar de separadas por muitos séculos e um oceano, segue a mesma lógica e o mesmo bom senso de Paris, com a escolha do sítio recaindo — por óbvio — sobre as terras planas às margens do Rio Potomac, navegável, com o centro institucional e prédios mais importantes alinhados no eixo solar leste-oeste.
Estando lá, a gente percebe a intenção do projeto através das visadas grandiosas e da perspectiva impactante que amplificam a institucionalidade. A lógica e o bom senso reinam.
E quanto à nossa Belo Horizonte?
Comecemos pelo sítio escolhido, uma área com pouco menos de 8,8 milhões de metros quadrados, delimitado ao norte por um rio de pequeno porte, não navegável, e ao sul por uma serra, ensejando ruas com inclinação próxima a 20% (as áreas suburbanas têm uma topografia ainda pior).
A área escolhida poderia ter adotado o rio, mesmo tímido, como eixo geográfico central, garantindo a totalidade dos 9 km2 em áreas planas, igualmente distribuídas ao norte e ao sul, e posicionado a centralidade institucional e os prédios mais importantes próximos ao rio, cercado de parques e jardins, com a perspectiva adequada e imponente que requerem uma nova capital.
Há claro, como vencer terrenos de topografia desafiadora, menos “fáceis”, mas Aarão Reis preferiu desafiar os morros com a malha ortogonal de influência hispânica, ao invés de superar, delicadamente, com ruas mais orgânicas e menos “duras”.
Desafiando o bom senso, a cidade de costas para o rio, prédios institucionais pulverizados pelo território, pouquíssimas praças, ruas íngremes, visadas pobres, perspectiva acanhada, não por acaso, características constantes em nossa administração municipal.
Aarão Reis falava em ruas largas, boulevares, institucionalidade, qualidade e todo o repertório de atributos elevados que só fazem evidenciar a enorme distância que pode haver entre “inspirações” distantes e a dura realidade.
Mas Aarão Reis fez o que sabia, e com o conhecimento que teve acesso e, por isso, figura em nossa história de forma elogiosa.
Se Aarão Reis não teve acesso amplo ao conhecimento humano, recursos e tempo para fazer simulações a 130 anos atrás, hoje isso já não é desculpa, e a soma do conhecimento, das informações disponíveis e dos sistemas computacionais nos permitem experimentar de forma virtual e simular propostas e respostas de forma quase imediata.
Simulações são importantes, tanto quanto reveladoras do quanto boas ideias — muitas vezes suportadas por teses populares — podem gerar resultados totalmente imprevistos, quando não diametralmente opostos aos inicialmente previstos.
Mais do que importantes e reveladoras, as simulações são imprescindíveis, já que os erros, em se tratando de cidades, são praticamente irreversíveis.
Nas cidades, um plano errado dificilmente será revertido, e potencialmente piorado com intervenções futuras. Vale para a infraestrutura (em especial a viária), vale para os prédios.
Quando o primeiro Plano Diretor de Belo Horizonte veio em 1996, já estavam disponíveis dados, informações, equipes e sistemas computacionais para simular as propostas de mudança, antes que fossem efetivamente implementadas.
Concebido a partir de teses já obsoletas nas metrópoles dos países desenvolvidos, preconizava o espalhamento de baixa densidade, e se notabilizou por “mudar a lógica” e introduzir instrumentos e diretrizes restritivas que, em conjunto, iniciaram um processo de isolamento do pedestre das edificações que, recuadas, passaram a se isolar da cidade.
Para piorar, criaram uma cidade de “bandejas” suspensas ao obrigar o afastamento no pavimento térreo, mas permitindo estacionamentos nos pavimentos superiores. A “tese” de uma cidade de marquises para que o pedestre se protegesse das chuva redundou, de forma contundente, em quarteirões degradados, prédios cegos para as ruas, sombra em excesso e um conjunto de uma falta de beleza e harmonia ímpares.
Ao Plano de Diretor de 1996, seguiram-se outros ainda piores e, a cada um deles, mais restrições, mais “teses” furadas, menor coeficiente de aproveitamento, menos densidade e mais estímulo ao espalhamento.
Em comum, além das “teses” furadas, da redução da densidade e do estímulo ao espalhamento, a paixão por estacionamentos, por mais carros, mais ruas, viadutos e trincheiras.
Por óbvio, o custo da terra (lotes) cresceu numa velocidade muito maior do que o custo da construção e do crescimento da massa salarial.
E o maior vilão pelo crescimento exagerado do custo dos imóveis novos é, sem sombra de dúvida, o custo da fração ideal, função direta do custo dos terrenos.
Se o Plano Diretor aprovado em 2019 (11.181/19) tem o mérito de apostar e incentivar as Fachadas Ativas, o conjunto dos “vícios” herdados de todos o outros Planos Diretores desde 1996 impossibilitam que a cidade possa crescer e se regenerar de forma adequada, presa por amarras contraintuitivas e desconhecidas nas metrópoles europeias.
Mas não acredite em mim: ande por Belo Horizonte e veja você mesmo o estado em que a cidade se encontra, o quanto as zonas centrais estão degradadas e vazias, constate o quanto a infraestrutura das zonas centrais permanece desperdiçada e subutilizada (em oposição à escassez de infraestrutura nas zonas periféricas), o quanto a cidade se espalhou sem qualidade, constate a quase inexistência de espaço públicos de lazer e se dê conta do quão mal — e longe — vive a população de baixa renda.
E então? Colocamos a “mão na massa” e passamos a simular, ou continuamos investindo em “teses” furadas?
*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.