Bastiat e os nossos passeios

28 de março de 2024

Não sou advogado, nem especialista em legislação geral. Por força do ofício, conheço a legislação urbanística, e me guio pela lógica, ecoando (e jamais me afastando) do pensamento e dos ensinamentos de Frédéric Bastiat.

Frédéric Bastiat foi um francês do século XIX, economista e filósofo. Faço o registro para lembrar que um filósofo não precisa ser economista, mas um economista que não é, também, um filósofo (ou um estudioso da filosofia), produzirá modelos e teorias que baseiam os resultados em reações (que se acreditam) previsíveis, pelos indivíduos, aos estímulos propostos.

Não vai dar certo, claro, e a história é pródiga em erros dessa natureza. O genial Dan Ariely trata desse – recorrente – erro em seu livro de 2020, “Previsivelmente irracional: As forças invisíveis que nos levam a tomar decisões erradas“.

O foco de Bastiat esteve sempre nos direitos individuais e na distância, não rara, entre as leis e a justiça, e poucos meses antes de sua morte, em 1850, aos 49 anos, escreve um pequeno libelo chamado “A Lei“. Esse pequeno libelo (pequeno porque sucinto) é, hoje, um dos mais importantes marcos intelectuais a tratar da corrupção do legislador que, aos poucos, produz leis injustas e fomenta instituições que, ao invés de servir a sociedade, tudo dela extraem, e dela vivem.

Bastiat define a lei como “a organização coletiva do direito individual de legítima defesa”, ou o direito coletivo como a soma dos direitos individuais. Não é pouca coisa. Na medida em que postula que leis e governos ajam contra indivíduo sob o manto de um difuso interesse coletivo (que desrespeite um indivíduo), não pode ter legitimidade, porque, ao fim e ao cabo, está na verdade agindo em benefício de si mesmo (do governo, e contra os cidadãos).

Servir a cada um pode ser o oposto de pretender servir a todos, e é essa a distinção que Bastiat consegue nos ensinar. Instituições com foco difuso e que se propõem a servir a todos são, não raro, as que mais se servem de recursos públicos e menos entregam à sociedade.

Se vieram à mente os Correios, os Cartórios e a Petrobrás, você entendeu o conceito. Se você pensou nas empresas de telefonia pré-privatização, nas empresas públicas de energia e de saneamento, também.

Se você se lembrou que, até outro dia, o FGTS era corrigido para o trabalhador a 3% ao ano, mas emprestado a 15% para o mercado (após repasses a 6% para os bancos privados), você entendeu o conceito. Se você não entende o porquê de empresas públicas com monopólios gastarem recursos incrivelmente grandes em propaganda, você já entendeu tudo.

E, agora que você entendeu a implicância de Bastiat com os legisladores (ele mesmo um deputado na França), vai entender a minha com os passeios em todas as cidades.

No âmbito federal, o Parcelamento do Solo Urbano está regulamentado na Lei 6.766 de 1979, e lá, o legislador preferiu deixar os parâmetros específicos e exigências de parcelamento do solo urbano para cada município.

Existem, portanto, milhares de leis versando sobre o parcelamento do solo urbano em nosso país. Eu conheço umas 2 ou 3 apenas, mas sou capaz de apostar numa abordagem unânime, em que todos esses milhares de municípios tratem do sistema viário e suas calçadas da mesma forma.

Em Belo Horizonte (uma das 2 ou 3 que conheço), o parcelamento do solo urbano vem, essencialmente, da Lei 7.166 de 1996, posteriormente substituída pela Lei 11.181 de 2019, o atual Plano Diretor.

Muito pouco é falado sobre as calçadas, quase limitado a “deve ter largura mínima equivalente a 40% da largura total da via, podendo ser distribuído de forma diferenciada entre as calçadas, incluindo o canteiro central. É obrigatória a obediência às condições estabelecidas no Código de Posturas do Município“.

Acho pouco, considerando que Jane Jacobs (e vários outros luminares e pensadores das cidades) concordam que os passeios são o coração que pulsa e a alma de uma cidade. E mais: que uma cidade é tão mais vibrante, saudável, segura e dinâmica quanto mais largos e vigiados (por fachadas ativas, os “olhos da rua“) forem seus passeios, com declividade ou sem, em zonas movimentadas ou não.

E Jane Jacobs entendeu (e traduziu de forma genial) que os passeios são os espaços públicos de excelência a serem cuidados, mantidos e estimulados, como se fossem o sistema circulatório de uma cidade: quanto mais extensos, amplos e em boas condições, melhor estarão os quarteirões, os bairros e a cidade. Melhor estarão seus habitantes.

E nem seria diferente, porque legalmente no Brasil e em todos os países das Américas e da Europa, os passeios são parte integrante e indissociável do sistema viário. E o sistema viário é sempre público.

A chave aqui é: passeios são “espaços públicos”, e o Código Civil (art. 99) enquadra, sem sombras de dúvida, os passeios como “bens públicos de uso comum do povo“, o que é interessante, por caracterizar perfeitamente a propriedade (e, com isso, a responsabilidade), dissociada de seu uso. E não apenas o Código Civil, mas também o CTB – Código de Trânsito Brasileiro caracteriza os passeios como parte integrante das vias e do sistema de mobilidade urbana, e coberto pelas políticas de mobilidade.

De novo: público. Construído pelo próprio município, ou pelo empreendedor privado, e depois doado ao município, mas sempre, sob qualquer ângulo ou perspectiva, público.

A insistência tem uma razão de ser, por uma dificuldade de compreender: se os passeios são públicos, por que os cidadãos devem se responsabilizar por manter, reformar, adequar, reparar, pagar multas por fiscalização e, não raro, se responsabilizar por danos a terceiros?

Pense comigo: mesmo havendo dispositivos legais dispondo sobre obrigações dos cidadãos sobre os passeios em frente ao local onde moram ou trabalham, isso é uma impossibilidade jurídica, como seria se o poder público publicasse qualquer dispositivo legal transferindo a obrigação de pagamento de salários de um de seus funcionários a você.

Ao cidadão Sr. Fulano de Tal,

Visando promover maior interação entre o poder público e essa comunidade, a administração municipal vem, através desta, lhe encaminhar o contracheque do funcionário Fulano de Tal para que, a partir do próximo mês, o salário do nosso colaborador seja diretamente pago pelo munícipe, de acordo com o Decreto número tal publicado no dia tal.

Com as melhores estimas,

Prefeito Fulano de Tal

Não pode, assim como as companhias de energia não podem decidir que os cidadãos paguem diretamente pela manutenção de suas redes de energia, ou a empresa de saneamento pelas redes de água e esgoto. Para isso existem o IPTU e as contas de consumo de energia e água.

Mas, por alguma insondável razão, os cidadãos não apenas custeiam e executam a obras de construção em área pública, quanto são instados a mantê-la, reformá-la e adequá-la a cada nova regra de acessibilidade, estando sujeitos não apenas à fiscalização e multas por não fazer, mas também à indenização em caso de acidentes.

Mais um pouco e esse “entendimento”, certamente ao arrepio constitucional, se estende para os buracos no asfalto, ficando os contribuintes automaticamente obrigados a responder pela manutenção e reparos de suas ruas, poda das árvores e manutenção dos sinais de trânsito.

Uma pesquisa rápida pode revelar que, atualmente, mais importante do que o substrato legal, são os hábitos (de responsabilizar o contribuinte) que mais importam nas decisões judiciais, essas quase sempre a favor da municipalidade, quando o assunto é a responsabilidade sobre os passeios. Ainda assim, não fui capaz de encontrar nexo entre áreas públicas e a obrigação do cidadão de custeá-las, ou de responder sobre algo que não lhe pertença.

Recorro novamente (e sempre) a Bastiat, refletindo sobre o nosso estado civilizatório, quando hábitos sem amparo constitucional assumem a feição de jurisprudência e são repercutidos como se a vontade do poder público bastasse, mesmo na ausência de legalidade pela instância máxima.

Me pergunto se, fossem os passeios mantidos pela municipalidade, como estariam as nossas cidades? Mais arrumadas, com maior caminhabilidade, mais bonitas, mais seguras? 

Se, ao invés de fiscalizar e multar, a municipalidade fosse obrigada a manter e a cuidar, a abordagem seria outra? Seriam as calçadas mais práticas, com materiais mais padronizados e resistentes? 

Não estaria a municipalidade mais engajada e implicada na limpeza e segurança da cidade?

Perguntas que, para além dos aspectos práticos e econômicos, apontam para um nível necessário de compromisso entre o poder público e os cidadãos, não dirigido a toda a coletividade de forma indistinta, mas decorrente de um compromisso para com cada cidadão, individualmente. 

Leiam Bastiat, leiam Jane Jacobs.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.

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