Barry Parker ou Lúcio Costa?

15 de fevereiro de 2024

O Caos Planejado é, hoje, o maior e mais importante canal de urbanismo e cidades brasileiro. Aliás, mais do que um canal, é um verdadeiro Think Tank dedicado ao urbanismo, à mobilidade, transporte de massa, enfim, cidades e tudo o que importa numa cidade.

E não digo isso apenas porque tenho a honra (e o prazer) de escrever aqui de vez em quando, até porque isso fala muito mais da generosidade de seu Editor, Anthony, do que da qualidade dos textos. 

Para além das colunas, informações, bibliografia especializada, papers, teses, estudos, publicações, são os debates em torno de temas correlatos momentos de enorme riqueza intelectual e troca de conhecimentos.

E, em especial, os debates sobre traçados urbanos, comparando o traçado em grid (inspiração espanhola consagrada no Novo Mundo) e o desenho mais orgânico (herdado das vilas e burgos originais, ou de inspiração inglesa).

Não faltam argumentos a favor ou contra cada um dos modelos, normalmente associando o grid à eficiência, ordem, organização, otimização, regularidade e padronização.

O modelo em grid, quando em terrenos planos e de baixa declividade, é o que se pode chamar de “no-brainer” na América, ou “feijão sem bicho” nas minas Gerais. É fácil de ser entendido, de se orientar, de organizar o funcionamento; mão simples prá cá numa transversal, e no sentido oposto na próxima. Fácil, fácil.

Mas tem um probleminha: é meio sem graça, e induz ao tédio, falta de emoção, pressa ao caminhar; induz à padronização de ocupação. 

Na verdade, tem dois: fica difícil até o ponto de anacronismo quando em terrenos de média e alta declividade, produzindo corredores desagradáveis tanto para o pedestre quanto para carros e ônibus, e aumento dos ruídos, por conta da aceleração excessiva. Se eu desse qualquer importância ao ESG, diria que altas declividades aumentam a queima de combustíveis fósseis e a emissão de CO2, um problemão.

Não me lembro se já defendi o grid em algum momento, ou em algum debate, mas se já, estou voltando atrás e declarando o meu amor pelos traçados mais orgânicos (mais orgânicos não quer dizer exclusivamente orgânicos) vindos das aldeias e, devidamente sancionados pela academia, dos urbanistas ingleses e sua “cidade-jardim”.

Começo pelo mais óbvio, a topografia: terrenos de maior complexidade, topografia difícil, presença de áreas verdes, nascentes e cursos d’água funcionam melhor com traçados mais orgânicos, acompanhando as curvas de nível, buscando os vértices, evitando as cumeeiras, achando o “caminhar natural” e domando o terreno para o pedestre e os veículos.

Mas há, além das inúmeras surpresas que um percurso orgânico pode proporcionar, outros 2 fatores mais do que objetivos e tangíveis: evitam-se (ou reduzem ao mínimo) os cruzamentos onde os acidentes normalmente acontecem, e torna inevitável o aproveitamento de cantinhos, sobras de terreno e pontas de quadra de ângulos agudos para praças e “respiros” verdes.

Estive a poucos dias em São Paulo, basicamente em Vila Madalena, Sumarezinho, Pacaembu e Pinheiros, cada um uma pequena obra de arte e do engenho humano produzidos pela Cia. City ainda no início do século passado.

É emoção pura. É sempre uma surpresa, e uma praça ou um pequeno jardim a cada curva, e com informações novas por todo o percurso. São bulevares, é a baixa velocidade, o volume de verde, a inteligência ao domar declives e desníveis de respeito.

O Jardim América é bom, mas os bairros de topografia complexa desenvolvidos pela Cia. City pelas mãos mais que competentes de Barry Parker são geniais.

Difícil imaginar uma coisa mais preciosa do que a Horta das Corujas, ou a sucessão de pequenas praças e jardins em qualquer percurso no Jardim América, Vila Madalena, Sumarezinho, Pacaembu e Pinheiros. Num momento você está numa avenida absolutamente horrenda, entupida de carros e ônibus, insuportavelmente barulhenta para, um quarteirão depois, se ver imerso num percurso de baixa velocidade, poucos cruzamentos e muito, muito verde espalhado.

Depois de alguns dias indo e vindo, você tem uma espécie de epifania: um percurso pontuado por uma sucessão de cantinhos verdes parece muito (muito) melhor do que um grid cheio de cruzamentos, e com uma praça de maior porte num determinado ponto do bairro.

Essa constatação, confesso, vai contra a minha intuição e contra boa parte da bibliografia “moderna”, mas eu estava lá e, depois de ir e vir um tanto de vezes ao longo de 3 dias, não havia dúvidas: as “cidades-jardim” de Barry Parker são melhores, mesmo 100 anos depois, mesmo com o volume de carros e ônibus de São Paulo.

Se as avenidas pioraram e se tornaram mais terríveis a cada ano, os interiores dos bairros mantiveram-se genialmente agradáveis, e com um trânsito seguro.

A conclusão é ainda mais interessante quando consideramos que, ao contrário do Jardim América, os demais bairros vem assistindo casas sendo substituídas por prédios, comércio e serviços chegando em vários pontos, e ainda assim a essência permanece, muito pela impossibilidade que o traçado orgânico impõe à criação de corredores rápidos (e essa é apenas umas inúmeras razões pela qual urbanismo é coisa de Urbanista, e não da engenharia de tráfego).

Fazer o que o Lúcio Costa fez é fácil; difícil mesmo é fazer como Barry Parker, cujo desenho urbano em terrenos complexos continua funcionando tão bem, esbanjando qualidade ambiental e urbana, despertando surpresa e emoção 100 anos depois.

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