As raízes da crise elétrica em São Paulo

21 de novembro de 2023

Parcela importante da região metropolitana de São Paulo sofreu por mais de uma semana sem energia elétrica no início de novembro/2023, quando fortes ventos e chuva intensa varreram a cidade. A falta de preparo da ENEL, concessionária de distribuição de energia, para enfrentar o desastre é evidente. Mas a discussão precisa ser ampliada, porque o padrão não sustentável de ocupação do território torna a cidade vulnerável. É provável que estas chuvas e ventos tenham sido um evento extremo, típico de nosso período de mudanças climáticas. Como tornar a cidade mais capaz de suportar suas consequências?

Não há como negar a responsabilidade da ENEL e da prefeitura pelo desastre: a fiação é da ENEL e o espaço público é gerido pelo poder municipal. O contrato com a ENEL é federal, a regulação de distribuição de energia é federal. Mas há convenio da ANEEL com a ARSESP, agência reguladora estadual, e esta pode e deve fiscalizar a ENEL. Ou seja, ninguém escapa de parcela das responsabilidades. 

A ENEL se recusa a assumir um programa de enterramento progressivo da fiação, alegando que a obra não está prevista no contrato de concessão. Mas enterrar a fiação não é tarefa e custo exclusivo da ENEL, compete também às empresas que, de forma irregular em tantos casos, geram a inacreditável desorganização do cabeamento de transmissão de dados. O poder público nem mesmo sabe quais empresas têm fios, em que ruas e postes. É necessário criar valas técnicas a serem custeadas e compartilhadas pelo conjunto dos interessados. Quando a ENEL alega que a tarifa “não paga” o enterramento da fiação, está simplesmente protelando a discussão. E as três esferas de governo, Prefeitura, Estado e União, ao aceitarem essa discussão, estão sendo coniventes. 

A ENEL insiste em culpabilizar as árvores da cidade, que tombaram sobre a fiação, danificando-a. É um problema grave e recorrente: há queda de galhos e rompimento de fiação a cada chuva de maior volume.  A resposta que a prefeitura e a ENEL já por décadas dão a este problema é uma sistemática luta contra as árvores, que, afinal, “atrapalham” a fiação. Ou é a fiação que atrapalha as árvores? Não podemos viver sem a fiação, poucas atividades urbanas podem ir adiante sem energia elétrica. Mas nós podemos viver sem as árvores? Nossos governantes aparentemente ignoram que o combate indiscriminado às árvores é um dos fatores que levaram ao desastre que a região viveu.

Há necessidade de cobertura vegetal arbórea nas áreas urbanas, não “apenas” porque a biodiversidade traz ganhos à saúde humana, controle de pragas, mitigação da poluição atmosférica, qualidade urbanística e retenção de parte das chuvas nas copas e raízes, minimizando inundações. Há outro fator já muito estudado: o papel determinante das massas florestais na redução da temperatura em áreas urbanas. Áreas desprovidas de vegetação arbórea têm temperaturas mais elevadas e pressão atmosférica mais baixa, atraindo assim massas úmidas e ventos. Ou seja, nas chamadas “ilhas de calor”, vastamente cimentadas, vai chover mais intensamente, os ventos serão mais fortes. A luta da ENEL e da prefeitura contra as árvores, podando galhos, fragilizando a estrutura das árvores, acelerando sua morte, eliminando descaradamente vegetação que não está doente, não pode ser chamada de “manejo de arvores”. A fiação parece ficar mais confortável, mas na escala da cidade esse esforço destrutivo resulta exatamente no contrário do que se pretende. 

Certamente, não é apenas por esforço da ENEL que a cidade vem perdendo suas árvores. Muitos cidadãos, desconhecendo o papel que as árvores exercem, buscam removê-las. Em parcela importante das periferias, nem calçadas há, quanto mais árvores. E não é apenas nas calçadas que podemos ter árvores: praças e parques abundantes cumpririam esta função.

A regulação e fiscalização das atividades de distribuição de energia é muito focada na eficiência financeira do contrato, pouco atenta à convivência com os demais serviços, inclusive os que as árvores prestam. A regulação deve assumir um olhar urbanístico, compatibilizando o posteamento e a fiação com o conjunto das questões urbanas. A regulação de serviços públicos deve estar subordinada a políticas explicitadas pelo poder concedente. Isso demanda maior presença e ação por parte do poder público, dando prioridade para o caráter público amplo do serviço prestado, para além da equação financeira dos contratos. No caso, o poder concedente é a União, que precisa dialogar de forma construtiva com as prefeituras. As políticas públicas urbanas nunca são estritamente setoriais, cada setor dialoga e tem sinergia com os demais.

Stela Goldenstein é geógrafa e consultora autônoma, com experiência de trabalho com o setor público no Brasil, focando em políticas de meio ambiente, recursos hídricos, habitação e planejamento e desenvolvimento urbano. Foi Secretária de Meio Ambiente do Estado e do Município de São Paulo. Coordenou, representando o setor ambiental, a definição da legislação recursos hídricos e a implementação dos Comitês de Bacias Hidrográficas no Estado de São Paulo. Foi Coordenadora Nacional do 2030 Water Resources Group, entidade vinculada ao Banco Mundial que visa articular e viabilizar políticas e investimentos públicos e privados para a segurança hídrica.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.

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