Parcela importante da região metropolitana de São Paulo sofreu por mais de uma semana sem energia elétrica no início de novembro/2023, quando fortes ventos e chuva intensa varreram a cidade. A falta de preparo da ENEL, concessionária de distribuição de energia, para enfrentar o desastre é evidente. Mas a discussão precisa ser ampliada, porque o padrão não sustentável de ocupação do território torna a cidade vulnerável. É provável que estas chuvas e ventos tenham sido um evento extremo, típico de nosso período de mudanças climáticas. Como tornar a cidade mais capaz de suportar suas consequências?
Não há como negar a responsabilidade da ENEL e da prefeitura pelo desastre: a fiação é da ENEL e o espaço público é gerido pelo poder municipal. O contrato com a ENEL é federal, a regulação de distribuição de energia é federal. Mas há convenio da ANEEL com a ARSESP, agência reguladora estadual, e esta pode e deve fiscalizar a ENEL. Ou seja, ninguém escapa de parcela das responsabilidades.
A ENEL se recusa a assumir um programa de enterramento progressivo da fiação, alegando que a obra não está prevista no contrato de concessão. Mas enterrar a fiação não é tarefa e custo exclusivo da ENEL, compete também às empresas que, de forma irregular em tantos casos, geram a inacreditável desorganização do cabeamento de transmissão de dados. O poder público nem mesmo sabe quais empresas têm fios, em que ruas e postes. É necessário criar valas técnicas a serem custeadas e compartilhadas pelo conjunto dos interessados. Quando a ENEL alega que a tarifa “não paga” o enterramento da fiação, está simplesmente protelando a discussão. E as três esferas de governo, Prefeitura, Estado e União, ao aceitarem essa discussão, estão sendo coniventes.
A ENEL insiste em culpabilizar as árvores da cidade, que tombaram sobre a fiação, danificando-a. É um problema grave e recorrente: há queda de galhos e rompimento de fiação a cada chuva de maior volume. A resposta que a prefeitura e a ENEL já por décadas dão a este problema é uma sistemática luta contra as árvores, que, afinal, “atrapalham” a fiação. Ou é a fiação que atrapalha as árvores? Não podemos viver sem a fiação, poucas atividades urbanas podem ir adiante sem energia elétrica. Mas nós podemos viver sem as árvores? Nossos governantes aparentemente ignoram que o combate indiscriminado às árvores é um dos fatores que levaram ao desastre que a região viveu.
Há necessidade de cobertura vegetal arbórea nas áreas urbanas, não “apenas” porque a biodiversidade traz ganhos à saúde humana, controle de pragas, mitigação da poluição atmosférica, qualidade urbanística e retenção de parte das chuvas nas copas e raízes, minimizando inundações. Há outro fator já muito estudado: o papel determinante das massas florestais na redução da temperatura em áreas urbanas. Áreas desprovidas de vegetação arbórea têm temperaturas mais elevadas e pressão atmosférica mais baixa, atraindo assim massas úmidas e ventos. Ou seja, nas chamadas “ilhas de calor”, vastamente cimentadas, vai chover mais intensamente, os ventos serão mais fortes. A luta da ENEL e da prefeitura contra as árvores, podando galhos, fragilizando a estrutura das árvores, acelerando sua morte, eliminando descaradamente vegetação que não está doente, não pode ser chamada de “manejo de arvores”. A fiação parece ficar mais confortável, mas na escala da cidade esse esforço destrutivo resulta exatamente no contrário do que se pretende.
Certamente, não é apenas por esforço da ENEL que a cidade vem perdendo suas árvores. Muitos cidadãos, desconhecendo o papel que as árvores exercem, buscam removê-las. Em parcela importante das periferias, nem calçadas há, quanto mais árvores. E não é apenas nas calçadas que podemos ter árvores: praças e parques abundantes cumpririam esta função.
A regulação e fiscalização das atividades de distribuição de energia é muito focada na eficiência financeira do contrato, pouco atenta à convivência com os demais serviços, inclusive os que as árvores prestam. A regulação deve assumir um olhar urbanístico, compatibilizando o posteamento e a fiação com o conjunto das questões urbanas. A regulação de serviços públicos deve estar subordinada a políticas explicitadas pelo poder concedente. Isso demanda maior presença e ação por parte do poder público, dando prioridade para o caráter público amplo do serviço prestado, para além da equação financeira dos contratos. No caso, o poder concedente é a União, que precisa dialogar de forma construtiva com as prefeituras. As políticas públicas urbanas nunca são estritamente setoriais, cada setor dialoga e tem sinergia com os demais.
Stela Goldenstein é geógrafa e consultora autônoma, com experiência de trabalho com o setor público no Brasil, focando em políticas de meio ambiente, recursos hídricos, habitação e planejamento e desenvolvimento urbano. Foi Secretária de Meio Ambiente do Estado e do Município de São Paulo. Coordenou, representando o setor ambiental, a definição da legislação recursos hídricos e a implementação dos Comitês de Bacias Hidrográficas no Estado de São Paulo. Foi Coordenadora Nacional do 2030 Water Resources Group, entidade vinculada ao Banco Mundial que visa articular e viabilizar políticas e investimentos públicos e privados para a segurança hídrica.
*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.