Fevereiro se despede de nós e, numa paráfrase do que canta Jorge Ben Jor, teve carnaval. Por todo o país, foliões tomaram as ruas no ritmo do samba, do frevo, do axé, das marchinhas. Há os salões, há os clubes, há os sambódromos, mas são as ruas, esse espaço tão vital das cidades, o maior e mais democrático palco da festa.
Por mais de um ano entre 1978 e 1979 (com um retorno mais breve em 1987), antes de assumir o seu segundo mandato na prefeitura de Curitiba, o Jaime foi convidado para dar aulas no Departament of City and Regional Planning da University of California – Berkeley. Lá, conviveu proximamente com o hoje professor emérito Allan Jacobs, alma-irmã no amor pelas cidades, na curiosidade pela sua natureza e seu desenho, e na valorização dos espaços públicos.
Em 1993, Jacobs publicou uma obra de referência em desenho urbano, o clássico Great Streets (MIT Press). Metodologicamente, o livro compara centenas de ruas ao redor do mundo buscando identificar os elementos, de design a além, que as tornam “great” – “grandes ruas” que não são necessariamente “ruas grandes”.
Primorosamente ilustrado com cerca de 200 desenhos produzidos pelo próprio autor e fruto de intensa observação, o livro se organiza em quatro partes, além da Introdução. Nesta, Jacobs discute a importância das ruas na criação de comunidades, a pluralidade de funções que desempenham, e critérios para identificar o que as fazem boas. Na sequência, ou Parte 1, são examinadas em detalhe, tanto da forma física quanto do conteúdo social, cerca de quinze exemplos de ruas que o autor considera especialmente interessantes, por seu sucesso ou declínio, pertencentes às mais diferentes tipologias – ramblas, boulevares, ruas medievais, avenidas, entre outras.
A Parte 2 conta com um lindo nome, Streets that Teach, “ruas que ensinam”, e é um compêndio que analisa sistematicamente algumas dezenas de situações, detalhando e mensurando, para projetistas e gestores públicos, características estruturantes e condicionantes destes espaços. A Parte 3, Street and City Patterns, desvela um olhar analítico do tecido urbano de diferentes cidades (desenhados na mesma escala, o que permite fascinantes comparações), ressaltando não só aspectos de sustentabilidade, caminhabilidade e outros atributos da mobilidade urbana, mas também a forma das comunidades e potenciais para interações interpessoais. Já a Parte 4, final, procura sintetizar atributos de design que possam ser transferidos para outros contextos para se fazerem novas “grandes ruas”.
Se não cabe aqui uma síntese das quase 350 páginas do livro, cabe o convite para nos aprofundarmos na reflexão dos múltiplos papéis que as ruas desempenham nas nossas cidades, e como podem ser melhores. Numa conta muito aproximada, e considerando especialmente os espaços produzidos formalmente, entre 25 a 35% do território das nossas urbes é ocupado pela malha viária, em diferentes hierarquias/tipologias. Ou seja, um olhar mais carinhoso e criterioso para esse elemento definidor da forma e da vida urbana pode substantivamente transformar para melhor 1/3 da cidade. Como Jacobs coloca, as pessoas entendem que as ruas servem não apenas para o acesso e os deslocamentos, mas que cumprem também um papel simbólico, cerimonial, social e político. Será que nós, planejadores, projetistas, gestores, entendemos isso também?
Das centenas de ruas que compõe uma cidade, é claro que nem todas serão “great”. Mas podem, progressivamente, serem pelo menos “decent”, incorporando alguns dos atributos elencados pelas análises do livro: um caminhar despreocupado de buracos e outras armadilhas, o conforto ambiental de uma passagem sombreada pela presença das árvores, um mobiliário urbano atento às necessidades das pessoas, por exemplo. E, talvez, uma delas possa se tornar “great”. Esta era, inclusive, uma das ideias que o Jaime procurava semear em seus projetos: ter uma “grande rua”, um espaço físico e simbólico de convergência, um cenário para o encontro especialmente constituído e que componha a identidade, a imagem e o sentido de pertencimento em relação à cidade.
Algo que o carnaval nos lembra, e que Jacobs coloca já nas primeiras páginas de sua introdução, é que, de uma forma muito fundamental, as ruas permitem que as pessoas estejam ao ar livre; são lugares para encontrar outras pessoas – o que é uma razão básica para que tenhamos cidades, diga-se de passagem.
Como traz a marchinha composta por Noel Rosa e Braguinha, as Pastorinhas,
A estrela d’alva no céu desponta
E a lua anda tonta com tamanho esplendor
E as pastorinhas, pra consolo da lua
Vão cantando na rua, lindos versos de amor
Onde cantariam as pastorinhas, sem as ruas?
por Ariadne dos Santos Daher
*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.