As curiosidades da legislação urbanística carioca

20 de agosto de 2025

A legislação urbanística do Rio de Janeiro sempre foi alvo de críticas, sobretudo pela complexidade e pela grande quantidade de leis e decretos necessários para se compreender os potenciais construtivos de um lote. Antigamente, os volumes legislativos eram publicados pela gráfica Auriverde e apelidados, de forma quase afetiva, de “Tijolão”, em alusão ao seu tamanho e peso — tanto físico quanto interpretativo.

Nos últimos anos, as gestões municipais passaram a defender a simplificação normativa e chegaram a propor alguns projetos de lei com esse objetivo. Mas será que essa simplificação realmente se concretizou?

Desde a década de 1970, a formulação da legislação urbanística migrou para dentro das secretarias de planejamento, com pouca ou nenhuma interlocução com a sociedade civil. Antes da Constituição de 1988, os decretos eram editados diretamente pelo prefeito e, não raro, revogados ou modificados no dia seguinte. A partir dos anos 1990, os projetos passaram a ser encaminhados à Câmara Municipal para aprovação, mas sua elaboração continuou concentrada nas mãos de técnicos do poder executivo, com limitada participação pública.

O urbanista Flávio Villaça denominou esse período como a era dos “planos sem mapa” — legislações que consistiam basicamente em longos textos, acompanhados por um único mapa de zoneamento. Trata-se de uma metodologia que venho criticando há anos, por considerar que ela descola o planejamento da realidade urbana concreta e da visualização territorial, essencial para a compreensão do impacto das normas sobre a cidade.

A única exceção recente, no que se refere à participação social, foi a elaboração do Plano Diretor de 2024, que contou com debates mais amplos. No entanto, as propostas iniciais do plano sofreram sucessivas alterações ao longo do processo legislativo, muitas vezes contrariando os princípios discutidos publicamente.

Um exemplo emblemático do emaranhado normativo carioca é o Decreto nº 322, de 1976, que, apesar de se apresentar como um regulamento de zoneamento, extrapola sua função ao tratar também de temas relativos ao Código de Obras e ao parcelamento do solo urbano. Ou seja, para desenvolver um projeto era necessário consultar diversas normas e identificar onde cada tema era abordado — o que restringia a compreensão a poucos profissionais capazes de decifrar esse labirinto jurídico.

Em 2019, tivemos a primeira iniciativa concreta de simplificação normativa, com a publicação do Código de Obras Simplificado (COES). A nova lei, apesar de apresentar pontos que geraram dúvidas de interpretação — como no caso do afastamento frontal —, de fato representou um avanço em termos de clareza: era um texto objetivo, curto, e focado exclusivamente nos parâmetros edilícios. No entanto, seguiu a tradição da legislação carioca desde os anos 1970: não veio acompanhada de ilustrações explicativas, o que facilitaria a leitura técnica e reduziria interpretações equivocadas.

Mais grave, porém, foi o fato de que essa revisão não veio articulada com outras legislações igualmente necessárias, como a de uso do solo e de parcelamento do território, o que compromete a coerência do conjunto normativo. A proposta de simplificação, portanto, ficou pela metade.

Em 2023, com a revisão da Lei Complementar nº 229, conhecida como “Reviver Centro”, observou-se um novo retrocesso. Em seu artigo 60, a lei altera a regra de afastamento frontal — tema típico e exclusivo do Código de Obras —, criando uma sobreposição normativa. Assim, um profissional desavisado que consulte apenas o COES, como seria esperado, pode acabar utilizando a informação incorreta e ter seu projeto reprovado por não observar uma norma “escondida” em outra lei de natureza distinta.

Esse exemplo revela a reabertura de uma prática recorrente na legislação urbanística carioca: a inserção de conteúdos de diferentes naturezas em leis tematicamente específicas. A tendência, infelizmente, é a volta dos novos “Tijolões” — não mais impressos pela gráfica Auriverde, mas agora em formato digital e igualmente indecifráveis.

A proliferação de leis complementares nos últimos anos confirma esse movimento: todas abordam simultaneamente temas diversos, muitas vezes alheios ao seu objeto principal. É um urbanismo da improvisação e da insegurança jurídica, em que o planejamento se dilui em exceções e remendos.

 E assim vamos navegando… Talvez eu abra uma gráfica para produzir os novos “Tijolões”.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.

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Arquiteto pela Universidade Federal do Rio de Janeiro-UFRJ (1991), é Mestre em Arquitetura (2010) e Doutor em Arquitetura (2014) pelo PROARQ da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFRJ. É professor da Universidade Veiga de Almeida e do Mestrado Profissional no Programa de Pós-graduação em Projeto e Patrimônio da UFRJ. Sócio do escritório DCArquitetura e consultor de Planejamento Urbano. Autor de quatro livros sobre as transformações urbanas da cidade do Rio de Janeiro.
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