“Aqui tudo parece ainda construção e já é ruína”

18 de março de 2025

Caminhava um dia desses do trabalho no centro velho até a República quando, na passagem que liga a Avenida São Luís ao Copan, uma frase em caixa alta, no que parecia ser uma instalação artística, chamou minha atenção.

“Aqui tudo parece ainda construção e já é ruína”, dizia a frase, uma adaptação do famoso verso da canção “Fora de ordem“, do Caetano Veloso – verso este, por sua vez, inspirado nas impressões do antropólogo Claude Lévi-Strauss sobre o Brasil, apresentadas em seu clássico “Tristes trópicos”.

E de repente, num despretensioso final de tarde, São Paulo se revelava para mim em suas múltiplas e intrigantes contradições. Era, por um lado, a cidade sempre estimulante, que pode nos surpreender com arte numa simples caminhada na volta para casa; mas era também, por outro, a eterna ruína em construção, conforme denunciava a obra.

Poucas imagens parecem tão apropriadas para descrever a capital paulista quanto a da ruína em construção, com suas obras e prédios abandonados, os edifícios novos mas já sujos, desgastados; a paisagem sempre se renovando, mas nunca perdendo seu caráter distópico, ora artificial, ora decadente.

Aproveitei então que havia uma livraria ali perto, no térreo do Copan, para revisitar o capítulo sobre São Paulo de “Tristes trópicos” – e me surpreender, mais uma vez, com a atualidade daquelas observações do autor sobre sua passagem pela cidade há quase 100 anos. Divido aqui com vocês alguns trechos que tratam, particularmente, do desenvolvimento urbano da capital paulista.

“Um espírito malicioso definiu a América como um país que passou da barbárie à decadência sem ter conhecido a civilização. Poder-se-ia, com mais justeza, aplicar a fórmula às cidades do Novo Mundo: elas vão do frescor à decrepitude sem parar na madureza.”

“Para as cidades europeias, a passagem dos séculos constitui uma promoção; para as americanas, a dos anos é uma decadência. Porque elas não são apenas recém-construídas: são construídas para se renovar com a mesma rapidez com que foram erguidas, isto é, mal.”

“Chegando a São Paulo em 1935, não foi pois a novidade que primeiramente me espantou, mas a precocidade dos estragos do tempo.”

“No momento em que se levantam os novos bairros, quase não são elementos urbanos: brilhantes demais, demasiadamente novos, exageradamente alegres para isso. Lembrariam antes uma feira, uma exposição internacional, edificada para alguns meses. Depois desse prazo, a festa termina e esses grandes enfeites perecem: as fachadas descascam, a chuva e a fuligem aí traçam seus riscos, o estilo cai de moda, o ordenamento primitivo desaparece sob as demolições impostas, paralelamente, por uma nova impaciência.”

“Em 1935, os paulistas se gabavam do ritmo de construção em sua cidade; a média de uma casa por hora. Tratava-se, então, de palacetes; asseguram-me que o ritmo continua o mesmo, mas para os grandes edifícios. […] Nessas condições, a evocação de lembranças de quase 20 anos atrás assemelha-se à contemplação de uma fotografia fenecida.”

São Paulo muda mesmo muito rápido e poucas parecem ser as construções que trazem traços de originalidade e se mostram capazes de envelhecer bem. Uma delas, coincidentemente, é o Copan, em cujo térreo eu me encontrava naquele momento, com o livro na mão e a perplexidade diante de observações tão visionárias.

Um tempo depois, resolvi visitar novamente a instalação artística, mas ela já não estava mais lá – o que fez dela uma obra ainda mais interessante: imprevisível e efêmera, afinal, como a paisagem da cidade que estava a denunciar.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.

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Economista pela FEA-USP, mestre em economia pela EESP-FGV e tem mais de 20 anos de experiência na área de pesquisas e estudos econômicos. Mora em São Paulo e caminhar pela cidade é um de seus hobbies favoritos ([email protected]).
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