Que filme incrível, sensível, emocionante!
Bom, mas estamos em um site dedicado ao urbanismo, de forma que vou tentar me ater aqui somente às questões urbanísticas do longa-metragem.
Sim, porque ele também fala de urbanismo, uma vez que um de seus principais elementos, para não dizer um de seus protagonistas, é uma casa.
Uma casa idealizada, acolhedora, que vivia de portas abertas, onde os moradores e vizinhos entravam e de onde saiam livremente, até o dia em que ela é fechada pelas forças de repressão de um estado autoritário.
Uma casa que tinha um portão que seus moradores nem se lembravam que podia ser trancado – até o dia em que precisaram passar a trancá-lo.
Uma casa até então cheia de vida que precisa ser abandonada por causa de uma intervenção arbitrária de um regime de exceção; porque o vazio deixado pelo desaparecimento de um pai, assassinado pela ditadura, de tão doloroso se expande e ocupa com sua ausência todos os espaços daquela casa, que se transforma em saudade, nostalgia.
O que parece representar uma contundente metáfora de um país que viu seus sonhos, cores e esperanças estilhaçados por um golpe militar é uma representação bastante literal do impacto do planejamento urbano do período da ditadura nas nossas cidades.
É do início da década de 1970, quando a ditadura prende Rubens Paiva, por exemplo, as leis que estabeleceram em São Paulo os recuos frontais e laterais obrigatórios, resultando nos inúmeros prédios isolados no lote, sem vida no térreo – o que, somado ao aumento da violência e da sensação de insegurança, levou à proliferação das grades e muros, assassinando também a vitalidade urbana.
É a partir daquele período, durante e depois da ditadura, que os térreos de verdadeiros ícones arquitetônicos construídos em bairros tradicionais como Higienópolis passam a ser cercados por grades, que restringem o acesso a áreas que até então eram de fruição pública.
Ainda estão aqui essas grades, que ganharam a companhia de mais e mais casas e condomínios escondidos atrás de grades e muros.
Ainda estão aqui os espaços públicos construídos para não serem frequentados, para se evitar aglomerações, convívio com a diversidade.
Ainda estão aqui as grandes obras viárias daquele período, como o Minhocão, e todas as suas consequências negativas para a cidade.
Ainda estão aqui a lógica rodoviarista e o privilégio das vias para os carros e não para as pessoas.
Ainda estão aqui os conjuntos habitacionais sendo construídos longe da infraestrutura, dos empregos e dos serviços, onde os moradores se tornam reféns dos automóveis, o que agrava os prejuízos socioambientais causados pelo transporte individual motorizado; o que agrava, principalmente, a segregação socioespacial tão característica de São Paulo.
Enfim, ainda está aqui certa visão que acabou se acostumando com o que não deveria mais ser tolerado; que encara com absoluta naturalidade tanto viver trancafiado atrás de grades e muros quanto conviver com a exaltação pública dos abusos e da tortura da ditadura militar.
Ditadura que, vale sempre lembrar, assassinou Rubens Paiva e nunca foi devidamente passada a limpo, deixando até hoje cicatrizes não somente em nossas cidades, mas na nossa sociedade, a qual ainda flerta com lideranças que sempre agrediram os princípios democráticos.
Talvez a nossa dificuldade de colocar em prática ideias associadas ao direito à cidade e à cidade para as pessoas, afinal, também passe pelo fato de nunca termos consolidado um entendimento coletivo do que é democracia e cidadania. E a segregação e a baixa qualidade urbanística das nossas cidades, afinal, talvez sejam apenas a face mais visível desse problema muito mais profundo.
*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.