“Ainda estou aqui”: urbanismo

26 de novembro de 2024

Que filme incrível, sensível, emocionante!

Bom, mas estamos em um site dedicado ao urbanismo, de forma que vou tentar me ater aqui somente às questões urbanísticas do longa-metragem.

Sim, porque ele também fala de urbanismo, uma vez que um de seus principais elementos, para não dizer um de seus protagonistas, é uma casa.

Uma casa idealizada, acolhedora, que vivia de portas abertas, onde os moradores e vizinhos entravam e de onde saiam livremente, até o dia em que ela é fechada pelas forças de repressão de um estado autoritário.

Uma casa que tinha um portão que seus moradores nem se lembravam que podia ser trancado – até o dia em que precisaram passar a trancá-lo.

Uma casa até então cheia de vida que precisa ser abandonada por causa de uma intervenção arbitrária de um regime de exceção; porque o vazio deixado pelo desaparecimento de um pai, assassinado pela ditadura, de tão doloroso se expande e ocupa com sua ausência todos os espaços daquela casa, que se transforma em saudade, nostalgia.

O que parece representar uma contundente metáfora de um país que viu seus sonhos, cores e esperanças estilhaçados por um golpe militar é uma representação bastante literal do impacto do planejamento urbano do período da ditadura nas nossas cidades.

É do início da década de 1970, quando a ditadura prende Rubens Paiva, por exemplo, as leis que estabeleceram em São Paulo os recuos frontais e laterais obrigatórios, resultando nos inúmeros prédios isolados no lote, sem vida no térreo – o que, somado ao aumento da violência e da sensação de insegurança, levou à proliferação das grades e muros, assassinando também a vitalidade urbana.

É a partir daquele período, durante e depois da ditadura, que os térreos de verdadeiros ícones arquitetônicos construídos em bairros tradicionais como Higienópolis passam a ser cercados por grades, que restringem o acesso a áreas que até então eram de fruição pública.

Ainda estão aqui essas grades, que ganharam a companhia de mais e mais casas e condomínios escondidos atrás de grades e muros.

Ainda estão aqui os espaços públicos construídos para não serem frequentados, para se evitar aglomerações, convívio com a diversidade.

Ainda estão aqui as grandes obras viárias daquele período, como o Minhocão, e todas as suas consequências negativas para a cidade.

Ainda estão aqui a lógica rodoviarista e o privilégio das vias para os carros e não para as pessoas.

Ainda estão aqui os conjuntos habitacionais sendo construídos longe da infraestrutura, dos empregos e dos serviços, onde os moradores se tornam reféns dos automóveis, o que agrava os prejuízos socioambientais causados pelo transporte individual motorizado; o que agrava, principalmente, a segregação socioespacial tão característica de São Paulo.

Enfim, ainda está aqui certa visão que acabou se acostumando com o que não deveria mais ser tolerado; que encara com absoluta naturalidade tanto viver trancafiado atrás de grades e muros quanto conviver com a exaltação pública dos abusos e da tortura da ditadura militar.

Ditadura que, vale sempre lembrar, assassinou Rubens Paiva e nunca foi devidamente passada a limpo, deixando até hoje cicatrizes não somente em nossas cidades, mas na nossa sociedade, a qual ainda flerta com lideranças que sempre agrediram os princípios democráticos.

Talvez a nossa dificuldade de colocar em prática ideias associadas ao direito à cidade e à cidade para as pessoas, afinal, também passe pelo fato de nunca termos consolidado um entendimento coletivo do que é democracia e cidadania. E a segregação e a baixa qualidade urbanística das nossas cidades, afinal, talvez sejam apenas a face mais visível desse problema muito mais profundo.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.

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Economista pela FEA-USP, mestre em economia pela EESP-FGV e tem mais de 20 anos de experiência na área de pesquisas e estudos econômicos. Mora em São Paulo e caminhar pela cidade é um de seus hobbies favoritos ([email protected]).
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