A reforma da Praça dos Três Poderes

7 de novembro de 2025

Monumentos 1 x 0 Pessoas

A Praça dos Três Poderes começa a ser reformada este mês. Ela é a praça mais importante de Brasília, e o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional/IPHAN lançou uma licitação em 2024 cujo critério de julgamento foi “menor preço por item”.

Vou repetir: a licitação para intervir na praça mais importante da capital do Brasil, cidade com título de Patrimônio Cultural da Humanidade, teve como critério de julgamento aprovar a proposta mais barata.

Eu poderia escrever horrores sobre o critério de julgamento não ter sido “melhor técnica ou conteúdo artístico”, mas não vale a pena. Tirem suas conclusões. Quero aqui abordar o fato de o Edital ignorar a praça como espaço público.

No Anexo I, de 104 páginas, o objeto do contrato não é a praça, mas seus componentes: edifícios, obras de arte, piso, iluminação. Procurei nele algumas palavras. “Pessoas” aparece 4 vezes apenas para se referir a pessoas físicas e jurídicas. Não aparecem “pedestres”, “gente”, “turistas”, “brasilienses”, “manifestantes”. “Ambulantes” só aparece na frase: “um deles, aparentemente está servindo como suporte (…) aos ambulantes” (p. 79). “Funcionários” aparece apenas na frase: “Os funcionários do museu relatam a presença de baratas” (p. 79).

A palavra “visitantes” aparece uma vez: “Considerando também o caráter turístico e cívico da praça, é fundamental que o espaço esteja apto a receber visitantes e autoridades” (p. 88). É o único momento em que se parece entender que o “bem patrimonial” é frequentado. Pena, porque a Praça dos Três Poderes é um local único, singular, não apenas por seu estoque artístico e arquitetônico, mas sobretudo pelas práticas sociais que nela ocorrem e que contam sua história.

Eu não sei nada sobre patrimônio, mas aprendi que a gente preserva o que ama e ama o que conhece, e que é preciso criar as melhores condições para que todos conheçam o testemunho da nossa história, da nossa cultura.

Condições como, por exemplo, de acesso. Como se chega à praça? Ela está bem conectada ao que ocorre à sua volta? As passagens de pedestres são suficientes? Quem trabalha no Congresso, no Planalto, chega nela por onde? Se for cadeirante, chega também? Como ela pode ser acessada de bicicleta? Quem desce do ônibus faz qual trajeto para alcançá-la? Ele é conveniente? Ninguém levantou isso.

Na página 13 está escrito que é preciso fazer “Adaptação do circuito de visitação proposto às normas de acessibilidade universal”. Sim, mas isso só depois que a pessoa brotar dentro da praça, claro. Ninguém sabe como ela chega lá. E que circuito de visitação é esse? Alguém mapeou, observando sistematicamente? Pois é, não.

Outras condições diriam respeito ao apoio às práticas existentes, e para isso teria sido imprescindível estudar a praça e seus sujeitos. Aos 65 anos, como ela é usada? Por quem? O que dizem e como se comportam nela funcionários, autoridades, ambulantes, visitantes, guias de turismo, vigilantes, quem nela promove e frequenta eventos e cerimônias, manifestantes? Não se sabe.

Em julho, fui ao IPHAN me oferecer para fazer, de graça, uma avaliação de pós-ocupação da Praça dos Três Poderes. Mesmo convicta de que esse estudo deveria ter vindo antes do Edital, para pautar toda a lógica da intervenção, entendi que ele ainda poderia ser útil.

Quantas pessoas passam, quantas permanecem, onde permanecem, o que fazem, como fazem, por quanto tempo? Pensei que o IPHAN poderia achar legal ter esses números, para ver se depois da reforma a praça vai receber mais frequentadores, frequentadores mais diversos, que se demorem mais, usufruindo-a mais. Não achou: agradeceu e recusou minha oferta.

Lamento que essa intervenção ignore a Praça dos Três Poderes como espaço público que pode acolher e maravilhar ainda mais os cidadãos, e a veja apenas como uma coleção de objetos a serem restaurados sobre uma bandeja de pedra portuguesa. Torço para que as próximas não sejam assim.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.

Compartilhar:

Arquiteta, professora da área de urbanismo da FAU/UnB. Adora levantamento de campo, espaços públicos e ver gente na rua. Mora em Brasília. ([email protected])
VER MAIS COLUNAS