A rampa de Porto Alegre

1 de outubro de 2025

Quem cresceu em Porto Alegre conhece a cena. Passar em frente ao Centro Administrativo Fernando Ferrari (CAFF) e olhar para aquela fachada curvada, meio piramidal, com a mesma fantasia infantil. “E se alguém descesse dali? De carrinho de lomba, de bicicleta, de skate?”. Era um sonho de gerações transformar um edifício público em brinquedo urbano. 

O CAFF nasceu nos anos 1970 como a aposta de um Estado que queria condensar sua máquina administrativa em um único ícone moderno. O desenho original previa mais de 30 andares e cerca de 120 m de altura, mas o que veio ao mundo foram 22 pavimentos e 88 m. Entre o desejo e o concreto entraram custos e pragmatismo. Mesmo “menor” que a ambição, bastou para impor presença, um monólito moderno que se tornou símbolo do poder público.

Essa dualidade acompanha o edifício desde sempre. De um lado, a rotina burocrática. De outro, o mito urbano de aventura, a maior “rampa” da cidade, um plano inclinado que atravessou a infância de muitos porto-alegrenses. Todo mundo conhece alguém que um dia sonhou em ter descido aquela “rampa”. 

Em setembro de 2025, a lenda ganhou data e hora. O Mineirinho, Sandro Dias, encarou o desafio com a infraestrutura montada da Red Bull. Painéis de madeira revestiram a curva do CAFF, como se o edifício ganhasse pele nova por alguns dias. O traçado respeitou a geometria do concreto, mas lhe deu outra função. Em vez de fachada, pista. 

Lá do alto, a 70 metros, o drop-in aconteceu. O devaneio virou física aplicada. Aceleração a 103 km/h e dois recordes mundiais. A cidade parou para assistir um edifício que, por um instante, desviou seu roteiro previsível para encarar outra narrativa. A do risco medido, da coragem e da apropriação criativa do espaço. 

Não é apenas espetáculo. O episódio diz algo sobre como nos relacionamos com nossos ícones. O CAFF foi erguido para representar ordem e eficiência. Acabou, por um dia, simbolizando imaginação. Isso importa porque as cidades tendem a endurecer. Normas se acumulam, o medo de usar a rua aumenta e a distância entre edifícios e pessoas cresce. Eventos como esse lembram que a arquitetura também é linguagem. 

Há quem torça o nariz e pergunte sobre patrimônio ou risco. O ponto é que nada foi improvisado. A intervenção foi planejada, licenciada e removível, um uso efêmero que não fere a integridade do edifício e, ao contrário, amplia seu repertório simbólico. Cidade viva precisa de regras, mas também de brechas para o extraordinário. 

Esse talvez seja o legado mais interessante do dia em que o CAFF virou, de fato, rampa. Lembrar que todo edifício carrega uma margem de poesia. O projeto sonhou alto, a realidade cortou um pedaço, e a cultura devolveu outra parte em forma de gesto. Entre cálculo e frio no estômago, apareceu a cidade, não a dos processos, mas das memórias que ficam. 

No fim, Porto Alegre ganhou mais do que um recorde. Ganhou uma história que reconcilia infância e arquitetura, administração e aventura. O CAFF segue sendo o que sempre foi, um edifício alto, sede de secretarias, referência de skyline. Mas agora também é outra coisa: um lugar onde a imaginação coletiva encontrou, por um dia, uma superfície para deslizar. 

Talvez esse seja o verdadeiro papel de um edifício público – não apenas abrigar a máquina do Estado, mas também oferecer momentos em que a cidade inteira reconhece nele e se deixa encantar. O CAFF, símbolo do Estado, virou palco da cidade. Entre gabinetes e manobras de skate, revelou-se que a arquitetura pública só faz sentido quando dialoga com as pessoas que a cercam.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.

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