Feche os olhos por alguns segundos. Pense em uma quadra qualquer. Pode ser da sua cidade ou de um lugar que você conhece bem. Visualize. Tem casas? Tem edifícios? Os dois misturados? Tem aquele miolo estranho com um estacionamento, um galpão, um vazio que ninguém sabe explicar? Agora repare: é tudo contínuo ou parece um mosaico mal cortado?
Essa quadra que você imaginou – e eu posso apostar sem medo – nunca atingiu o potencial construtivo que o planejamento urbano garantiu que ela poderia ter. E não é por falta de boa vontade. É porque, na cidade real, as quadras brasileiras são organismos tortos, heranças de remendos, ocupações de diferentes décadas e regras que mudam mais rápido do que o mercado consegue absorver.
A fragmentação fundiária trava tudo. Testadas pequenas, lotes encaixados como peças de Lego de tamanhos diferentes, recuos aleatórios, casas tombadas que não podem ser substituídas e, claro, um ou dois proprietários que seguram terrenos sem a menor intenção de vender. No papel, o Plano Diretor diz que ali caberia um CA 4. Na prática, a conta fecha em CA 1,5 – e olhe lá – ,caso não remembrem os lotes, porque ninguém consegue montar o quebra-cabeça necessário para usar o potencial outorgado.
E essa trava fundiária tem consequências visíveis. A quadra vira uma “salada mista” de edifícios, com uma edificação de 18 andares grudada num bloco de 7, colada num edifício dos anos 70, ao lado de uma casa térrea que sobreviveu à modernização, sem esquecer daquele terreno vazio que virou estacionamento.
Cada edifício nasceu sob um conjunto diferente de regras, incentivos e humores do mercado. O resultado não é diversidade urbana – é uma ambiência quebrada, incoerente, que parece ter sido planejada por um comitê que nunca chegou a se reunir.
E cada intervenção isolada só aprofunda o problema. O edifício novo tenta ganhar escala metropolitana; o vizinho insiste na escala doméstica; o outro terreno permanece vazio; e a quadra inteira nunca se completa. Ela não é residencial, não é comercial, não é de alta densidade, não é de baixa. É tudo ao mesmo tempo e, por isso, não é nada.
No fim, a “quadra incompleta” não é exceção. É praticamente o nosso modelo padrão de cidade. E a pergunta que fica é simples: você conhece alguma quadra realmente completa?
Se conhecer, provavelmente só existe por um de dois caminhos. Ou alguém comprou a quadra inteira para erguer um empreendimento único ou se trata de uma quadra formada antes dos planos diretores, quando o tecido urbano ainda se consolidava por continuidade, não por uma coleção de regras que mudam a cada década.
Por esses motivos (e infelizmente) os edifícios altos construídos dentro desse ambiente normativo acabam sendo culpabilizados por “destruir ambiências”. Quando, na verdade, eles só entram em cena nas quadras que já nasceram fragmentadas, já envelheceram mal e já carregam décadas de sobreposições mal planejadas. O edifício alto vira o vilão conveniente de uma história cujo enredo foi escrito muito antes dele aparecer.
Enquanto nossos planos continuarem imaginando quadras perfeitas, idealizadas como se nascessem do zero – sem nenhum edifício existente, com lotes perfeitamente iguais e proprietários alinhados –, a cidade real vai seguir assim, costurada por partes, interrompida por terrenos travados e sempre carregando um potencial que existe, mas nunca alcançado.
*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.