Jaime Lerner, em muitos sites de consulta, em muitas listas, em muitos círculos virtuosos vai ser sempre identificado como arquiteto, referência em planejamento urbano. Para mim, era meu pai e mesmo assim, nunca consegui enxergá-lo sem essa bagagem institucional. Meu pai foi a pessoa mais feliz que conheci, e talvez por isso nunca conseguiu separar a “pessoa física” da “jurídica”. Ser arquiteto, lidar com cidades, era sua essência. Profissionalmente era a pessoa mais realizada do planeta, amava o que fazia incondicionalmente e esse prazer vinha de uma certeza que acompanha aqueles que intuitivamente entendem o mundo.
Perdi meu pai em maio de 2021 e recebemos, eu, minha irmã e nossas famílias, inúmeras e inesquecíveis manifestações de carinho e reconhecimento. Uma cidade inteira nos acolheu. Esse turbilhão de afeto, mesmo em meio a dor da perda, nos emocionou e nos fez refletir o quanto ele tocou positivamente a vida de tantas outras pessoas.
A nós, entre todas as heranças, coube a mais importante, o legado.
Transformamos então a herança em missão. Assim ressurgiu o propósito do Instituto Jaime Lerner, transmitir o legado.
O Instituto Jaime Lerner existe há anos. Sempre teve um papel discreto entre todas as atividades que meu pai hiperativamente fazia. Mas sempre foi especial. Sempre teve em sua essência a transmissão de um saber, mais que isso, a transmissão de um amor pela cidade.
Acima de tudo, meu pai foi um entusiasta das cidades. Ali ele depositava suas ideias, sua genialidade, seu entusiasmo e sua paixão. A cidade como foco e como agente de transformação da vida das pessoas e do mundo.
Todo seu trabalho gira em torno dessa ideia fixa onde a cidade é a solução, é o cenário do encontro, é proposta para a escala humana, é palco da vida.
Ele tinha um olhar generoso sobre as cidades, às vezes interpretado como um otimismo romântico. Ele realmente acreditava que as cidades são o lugar onde viver expressa a tolerância e a coexistência. Para ele, diversidade, múltiplas funções, prosperidade e sustentabilidade eram os ingredientes para essa equação funcionar, tudo junto e misturado. A cidade que não separa idades, crenças, rendas, funções. A cidade real, a cidade que é boa, é uma cidade que deve ser feliz pra todos.
Ao Instituto, cabe agora celebrar essa ideia e sua força. Aqui, a cidade será tema, reflexão, projeto, discussão, aprendizado, história, inovação. Nele, a pesquisa, os encontros e diversos eventos terão espaço. Uma série de atividades estão sendo formatadas para que o legado transcenda palavra e memória, que passe a ser ação. Aqui é mais um espaço para isso.
De uma de suas muitas viagens, meu pai trouxe a lembrança de uma frase admirável que encontrou escrita em um banco de praça: “Mais vale a graça da imperfeição que a perfeição sem graça”. Ao refletir no que compartilhar neste texto inaugural, essa amostra de gentileza urbana me voltou à memória, pois me parece estar no mesmo compasso ao que se propõe o “Caos Planejado”: trabalhar a cidade possível.
Essa coluna compartilhará reflexões que compõem facetas deste debate, com o desejo de envolver a sociedade nestas discussões. Aqui teremos voz, nossa própria, de nossos colaboradores ou de pensadores convidados; gente que divide esse entendimento, que tem o comprometimento com uma visão de mundo onde a cidade é feita para a escala do homem. Assim meu pai, bem como suas ideias, estará sempre vivo, sempre presente. Curitiba e muitas das cidades onde ele trabalhou, tem muito dele. Nossa casa, sede do Instituto também. Esperamos que vocês também o encontrem por aqui!
Coluna de autoria de Ilana Lerner.
*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.