A favor do acaso

2 de agosto de 2023

As cidades demandam o nosso movimento contínuo. Nos movemos para trabalhar, fazer compras, encontrar amigos, ir a shows e exposições de arte. Todas essas são atividades que as grandes cidades oferecem.

Porém, desde a pandemia, a tecnologia tornou possível viver uma vida inteira sem sair de casa. Muitas pessoas podem trabalhar remotamente em tempo integral, conectando-se online para obter as informações necessárias. Elas podem ter sua comida entregue em casa e seu entretenimento pode ser transmitido online. Elas podem se exercitar em uma bicicleta ergométrica, guiadas por um treinador em sua tela. Elas podem encontrar amigos online.

Essa vida hipotética seria totalmente planejada. E como qualquer coisa totalmente programada com antecedência, logo se tornaria tediosa e ineficiente. Seria semelhante, no nível pessoal, ao GosPlan que guiava a economia da União Soviética. A aleatoriedade fornecida pela vida cotidiana ativa da cidade estaria faltando.

A aleatoriedade — eventos que acontecem por acaso — torna a vida emocionante e produtiva. A forma como projetamos cidades pode multiplicar ou reduzir as chances de encontros aleatórios com pessoas e ideias. A criatividade e a inovação dependem de encontros não planejados com pessoas com habilidades, gostos e formações diferentes.

Nas cidades, a maioria das viagens usa algum meio de transporte mecânico ou motorizado, mas geralmente começa e termina com uma caminhada. Ao nos movermos por uma cidade, coletamos informações visuais sobre as áreas que atravessamos; esta informação é aleatória, não planejada. Caminhar por uma calçada fornece o tipo de informação mais inesperado e diversificado. Jane Jacobs descreveu esse processo ao escrever: “O balé das calçadas da cidade nunca se repete de um lugar para outro e, em qualquer lugar, está sempre repleto de novas improvisações.”

Vejamos como os urbanistas podem aumentar a aquisição de informações aleatórias e multiplicar os encontros casuais.

As cidades são divididas em duas áreas fundamentalmente diferentes: ruas e lotes privados. Planejadores e engenheiros projetam ruas, enquanto famílias e empresas projetam o que é construído em lotes privados. Os planejadores, por meio de regulamentos de uso da terra, muitas vezes restringem severamente o projeto nos lotes privados.

Os estabelecimentos comerciais privados onde as pessoas costumam se encontrar, como cafés, bares, restaurantes, cinemas, teatros, clubes e igrejas, são essenciais para a criatividade das cidades. A abertura dos estabelecimentos comerciais para a rua é a melhor forma de transmitir informações sobre o que eles têm a oferecer. É por isso que cafés e restaurantes amplamente abertos para a rua são tão atraentes. Os municípios devem permitir que cafés e restaurantes se expandam para o espaço público quando a largura da calçada permitir.

Fachadas ativas — ruas repletas de entradas coloridas, vitrines, cafés e lojas — geram motivos para as pessoas pararem e se envolverem, levando a mais encontros casuais. Por outro lado, paredes vazias ou fachadas de ruas inativas (geralmente encontradas em grandes edifícios de uso único, como garagens ou armazéns) podem desencorajar a atividade de pedestres e as interações sociais.

Os moradores da cidade geralmente adoram caminhar por um mercado aberto porque a abertura dos balcões maximiza a quantidade de informações aleatórias. A variedade de cores e fragrâncias dos mercados públicos proporciona aos visitantes sensações inesperadas e estimulantes.

Estabelecimentos que não podem ser abertos para as ruas, como casas de shows, teatros e lojas de departamento, ainda podem fornecer informações aos pedestres por meio de cartazes e vitrines elaboradamente projetadas. Os planejadores urbanos devem seguir algumas regras para aumentar a riqueza de informações coletadas pelos pedestres.

Primeiro, não separem o uso comercial ou cultural do uso residencial por meio de regulamentos de zoneamento. Não restrinjam os estabelecimentos comerciais a um único uso. Por exemplo, uma academia ou uma livraria deveria ter permissão para abrir um bar ou um restaurante em suas instalações, pois uma cidade ganha ao maximizar os encontros casuais.

Segundo, não obriguem o comércio a ter estacionamentos entre a calçada e o prédio. Caminhar em um estacionamento empobrece as informações coletadas durante a caminhada. Embora o estacionamento privado na rua seja às vezes indispensável, o estacionamento deve ser subterrâneo ou na parte de trás do edifício, não na frente.

Não imponham recuos em ruas residenciais no térreo. Esses recuos muitas vezes precisam ser protegidos por cercas monótonas.

A “Torre no Parque”, inspirada em Corbusier, é o maior pecado do design urbano. Esse layout limpa as ruas de informações aleatórias, pois as calçadas estão muito distantes dos edifícios para fornecer qualquer informação aos pedestres.

O acaso enriquece a vida urbana!

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.

Compartilhar:

Urbanista, pesquisador do NYU Marron Institute e autor do livro Ordem sem Design.
VER MAIS COLUNAS