Em seu livro “Dark Age Ahead” (Era das Trevas Adiante), Jane Jacobs estuda as razões que podem levar uma cultura dominante à decadência e, eventualmente, ao desaparecimento dessa mesma cultura.
Nas palavras dela, “a China dominou os mares no início do século XV. Ela enviou um grande número de navios de carga, chamados ”frotas de tesouro” (treasure fleet), através do Oceano Índico para a costa leste da África, décadas antes de Colombo cruzar o Atlântico. As frotas de tesouro consistiam em centenas de navios, cada um com até quatrocentos pés de comprimento. Uma frota era tripulada por até vinte e oito mil marinheiros. Séculos antes de a Marinha Real Britânica aprender a combater o escorbuto com rações de suco de limão em longas viagens marítimas, os chineses resolveram esse problema fornecendo aos navios feijões secos comuns, que eram umedecidos conforme necessário para fazer brotos de feijão, uma rica fonte de vitamina C.“
Por que a China não chegou à Europa? Porque não colonizou as Américas antes dos europeus? Por que a China perdeu a liderança tecnológica para a Europa, até então, tão atrasada?
Jacobs explica: “Nesse caso, o ponto de virada foi quase caprichoso, como o enredo de um musical ou uma opereta. No início do século XV, uma luta pelo poder político foi travada entre duas facções na burocracia imperial chinesa. (…) A facção vencedora afirmou seu sucesso interrompendo abruptamente as viagens, proibindo novas viagens oceânicas e desmantelando estaleiros.”
Em qualquer economia baseada em navegações, os estaleiros são, claro, o motor econômico e social das cidades e da sociedade como um todo. Seu fechamento teve, certamente, efeitos devastadores para a sociedade chinesa e para as cidades costeiras.
Mas a atenção de Jacobs, neste livro, se concentra num outro foco: políticas caprichosas e decisões ilógicas são capazes de destruir riqueza, alterar o equilíbrio de uma cidade ou de uma nação por completo, enterrando qualquer chance de prosperidade por décadas, eventualmente por séculos.
As cidades brasileiras, pensando sobre urbanismo, experimentaram o seu momento “Era das Trevas” na década de 1970, quando uma soma de forças e de ideias “Le Corbusianas” pareceram assentar como o novo marco urbanístico nacional, derivado da sensação de sucesso de Brasília, então concluída e operando maravilhosamente em favor do regime militar.
O sucesso de Brasília se deu no campo político e governamental, como uma espécie de Olimpo protegido da população, lugar restrito aos deuses e à sua burocracia, fortemente protegido pela geografia, local “higienizado” de povo (porque não havia qualquer povo para protestar, reclamar e pressionar).
E aí, penso, confundiu-se a conveniência da blindagem higienista com o urbanismo “correto”, “de qualidade”, “desejável” e “moderno”. As escolas de arquitetura compraram a ideia, os professores de arquitetura e urbanismo compraram a ideia (começando, claro, pela UnB), e gerações de arquitetos, urbanistas e gestores públicos se formaram ensinando a conveniência da cidade ideal para ditaduras e para a burocracia como se fosse modernidade. Estão há 60 anos vendendo segregação e setorização como se fosse a cidade ideal. Vendendo a privatização do Estado como se fosse política social.
Como na China de 6 séculos atrás, as cidades brasileiras são fruto, hoje, de uma situação de miséria urbana e profunda exclusão social por decisões equivocadas de uma burocracia protegida no paraíso, respaldada por uma academia deslumbrada e acrílica, tomadas 6 décadas atrás.
As cidades brasileiras não seguiram o modelo das superquadras, mas incorporaram de norte a sul os afastamentos e o desprezo pelo custo da terra urbana, o desprezo pelo bom aproveitamento dos lotes. Trocaram densidade por jardins privativos e “áreas de permeabilidade” inúteis.
A China levou 6 séculos para retomar o caminho da prosperidade. Quantas décadas as cidades brasileiras levarão?
*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.