A entrada norte do minhocão

1 de março de 2024

Será que as pessoas se sentam no chão porque gostam?

O Instituto Central de Ciências/ICC (conhecido como minhocão) é o prédio mais emblemático da Universidade de Brasília. O projeto de Niemeyer, com pré-fabricação de Lelé, possui 720 m de extensão, divididos em 3 alas, entremeadas por duas amplas entradas de 1.400 m² que são verdadeiros nós de distribuição e pontos de encontro da comunidade acadêmica. As entradas do ICC não são espaços públicos, mas na prática são o que mais próximo temos de praças no campus da Asa Norte. Por isso, prestaram-se a uma avaliação pós-ocupação a partir do método que construí na minha tese.

Na entrada norte, que é a que nos vai interessar aqui, há um pequeno comércio (que ainda vai merecer um desenho decente) e um mobiliário constrangedoramente escasso. O que se presta para assento são 45 metros lineares de mureta de jardim e um único banco de dois lugares. O resto é chão. Eventualmente aparecem cadeiras e mesas, levadas de algum canto para apoiar atividades temporárias, que depois retornam aos seus lugares. No levantamento que fizemos – Felipe Lima, Bruna Kronenberger e eu – numa quarta-feira de maio de 2014, das 8h às 19h, observando de hora em hora, contabilizamos 137 pessoas sentadas.

Eu sei, essa pesquisa tem 10 anos, mas nenhum outro item de mobiliário permanente foi colocado ali, de lá pra cá. Assim, esses números ainda se prestam à reflexão aqui pretendida.

Pois bem. Dessas 137 pessoas, 11 (8%) estavam sentadas naquele único banco, o que significa que, em média, ele estava sempre ocupado. As demais pessoas tiveram que improvisar: 41 (30%) estavam sentadas na mureta do jardim e 85 (62%) estavam sentadas no chão.

Vamos nos concentrar nas que estavam sentadas no chão. Todas eram estudantes: 42 mulheres e 43 homens. Havia gente sozinha e em grupo. Estavam: descansando, conversando, comendo, usando o celular, usando o computador, lendo, preparando uma manifestação. Todas as atividades duraram menos de uma hora, à exceção da última, que durou duas.

Das 85 pessoas, 84 estavam na saída para a Biblioteca Central. Um local fora do fluxo mais intenso, em frente aos quiosques de comida, onde não há muretas: apenas uma longa parede e uma rampa solta no meio, abarcando 260 m². É lá também que está aquele único banco que sempre estava ocupado.

Um levantamento de atividades estacionárias é assim: permite saber quem estava fazendo o quê, com quem, por quanto tempo, onde e em que posição. Essa é a informação fria. Agora, é preciso interpretar os números, à luz do atual estado de conhecimento sobre o assunto e da nossa visão de mundo. A partir dos propósitos do estudo, pode-se avaliar o desempenho do lugar.

Nosso propósito era ver como um dos principais locais de convívio e trocas dentro da UnB recebia sua comunidade, compreender que práticas abrigava, e que apoio ele oferecia para que seus usuários as desenvolvessem de forma confortável. Esse propósito persiste até hoje. Nossa visão de mundo é que ele deve ser o mais acolhedor, inclusivo e confortável possível, abrigando e favorecendo uma série de atividades.

Vamos à interpretação.

Todas as 85 pessoas eram estudantes (não é representativo da comunidade à qual o lugar serve). Eram 42 mulheres e 43 homens (ótimo equilíbrio de gênero). Havia gente sozinha e em grupo (ótimo sinal, especialmente se mulheres estiverem sozinhas, o que foi constatado). Estavam descansando, conversando etc. (boa variedade de atividades). As atividades duraram menos de uma hora, à exceção da última, que durou duas (compatível com o funcionamento do lugar). Preparar uma manifestação era a única atividade que precisava de uma ampla superfície para que várias pessoas pudessem fazer cartazes (todas as demais tendem a ser realizadas de forma mais cômoda em mesas e cadeiras). O “chão” escolhido é uma área propícia para se estar (em quase nada atrapalha o fluxo principal, permite boa visibilidade dos passantes e oferece tranquilidade para a execução das práticas).

Um olhar rápido diria que a entrada norte se presta bem à permanência, e que a falta de mobiliário não é um problema: há décadas que as pessoas se resolvem sentando-se no chão. Só que, depois do levantamento, a gente começa a fazer algumas perguntas. “Por que as pessoas se sentaram no chão?” é uma delas. “Porque elas quiseram” é uma boa resposta. Mas será que elas gostam? Será que elas preferem se sentar no chão?

Ora, a maioria delas não deixou de se sentar em bancos para se sentar no chão: simplesmente não havia bancos suficientes. Como a gente já sabe que a arquitetura não manda na nossa vida, mas que nos pode atrapalhar ou ajudar (falei disso neste texto ), o fato de não ter bancos não impediu que aquelas pessoas se sentassem no chão para permanecer no local, já que elas queriam realizar suas práticas ali. Então, a resposta mais lógica parece ser: “Porque não havia bancos para sentar, e elas quiseram permanecer ali, mesmo assim”.

Mas… será que alguém mais queria permanecer ali, mas não assim, com a bunda no chão? Quem, exatamente, a ausência de bancos exclui? Pelo menos professores e técnicos, como mostrou o levantamento. Eu jamais me vou sentar no chão, e não é porque eu sou professora: é porque tenho mais de 50 anos! Não quero ficar desconfortável ou sujar minha roupa. Pena para mim e para quem, como eu, gosta do lugar e adoraria permanecer nele. Pena para quem não pode sentar-se no chão, mesmo que queira. Pena para todo mundo, que poderia fazer tudo o que hoje já faz, de forma muito mais adequada e confortável.

Depois de ler tudo isso, você deve estar pensando: e ela, com esses números há 10 anos, não fez nada para tentar melhorar esse quadro? Tem toda razão. Que vexame. Vou aproveitar que voltei a eles neste texto e levá-los à reitoria.

Darei notícias.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.

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Arquiteta, professora da área de urbanismo da FAU/UnB. Adora levantamento de campo, espaços públicos e ver gente na rua. Mora em Brasília. ([email protected])
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