A cidade e suas mensagens secretas

18 de fevereiro de 2025

Há filmes que, de tão bons, continuam conversando conosco mesmo depois de muito tempo desde a última vez que os assistimos. É o caso de “Retratos fantasmas”, de Kléber Mendonça Filho.

Em uma das minhas passagens preferidas, temos antigas imagens do letreiro do cinema Moderno, no Recife, as quais, com a digitalização após muito tempo guardadas, sofreram uma espécie de mutação, dando a impressão de que as letras estão saindo do letreiro.

É “como se o letreiro do Moderno quisesse me falar alguma coisa, a marquise parecia uma mensagem secreta para alguém”, especula o narrador, para quem, com os letreiros, “a paisagem da cidade era marcada por palavras de fantasia”, “uns recados soletrados com cuidado e com malícia”.

“As marquises são marcadoras de tempo”, “os letreiros de cinema, de certa forma, comentavam a vida no mundo”, diz ele ainda, e conclui que sua extinção “foi uma perda para as cidades”.

Embora os letreiros, assim como os cinemas de rua, tenham mesmo praticamente desaparecido (uma pena, concordo com o Kléber Mendonça), creio que a cidade ainda possui muitas formas misteriosas de se comunicar conosco, apontar novos caminhos, nos entreter, fazer pensar e refletir.

Em São Paulo, uma de suas mais famosas placas de sinalização, aquela em que as setas indicando os bairros do Paraíso e da Liberdade apontam para sentidos opostos, já inspirou muito debate filosófico e até virou souvenir, item de decoração.

Diante da polarização política que assola o país e o mundo, é difícil ficar indiferente às mensagens de “Mantenha-se à direita” ou “Deixe a esquerda livre” nas escadas das estações de trem e metrô da cidade. 

Ainda no transporte público, também os letreiros dos ônibus parecem conter mensagens secretas, especialmente quando, caminhando pelo bairro, um veículo da linha “Socorro!” (865R-10) é seguido por outro da “Morro Doce…” (8622-10) – a qual me faz inevitavelmente lembrar de um ônibus que utilizava na minha infância e juventude, o “Novo Horizonte”, que passava perto de casa e ia até o bairro de nome otimista na fronteira entre Osasco e Carapicuíba.

E as mensagens da cidade, é claro, não param por aí. Estão nos lambe-lambes colados nos postes e muros, como o que dizia “Não mure, no more, ou a cidade morre”, mencionado em meu primeiro artigo no Caos Planejado. Estão nas vitrines e letreiros das lojas. Estão especialmente nos tantos grafites a trazer um pouco de cor e alegria às empenas cegas dos prédios.

Para quem ama caminhar por aí, como eu, estar atento às placas, vitrines, letreiros e grafites pode fazer da cidade uma verdadeira aventura, um livro aberto cheio de histórias e reflexões – e não apenas um não lugar por onde passamos para chegar a algum destino.

A arte de rua de São Paulo, em particular, já faz parte da identidade local, tendo reinventado espaços e criado verdadeiros marcos da cidade, como o Beco do Batman e o Minhocão, duas galerias de arte a céu aberto.

Por sinal, os grafites, assim como os antigos letreiros de ‘Retratos fantasmas’, também podem trazer para a cidade uma atmosfera de fantasia; também são marcadores de tempo e comentam a vida no mundo. 

Para o poder público, incentivar a arte de rua é uma grande oportunidade não apenas de tornar as cidades mais bonitas e interessantes, mas também de gerar renda para artistas e promover inclusão social, além de ser uma forma relativamente barata de diminuir os danos urbanísticos causados pelos muitos muros e empenas cegas de prédios.

Em tempo, foi num muro grafitado lá no caminho para o “Novo Horizonte” que li pela primeira vez, ainda na adolescência, os versos do poeta recifense Solano Trindade que nunca mais me saíram da memória: “Meu bairro era pobre / mas ficava bem bonito / metido num luar”.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.

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Economista pela FEA-USP, mestre em economia pela EESP-FGV e tem mais de 20 anos de experiência na área de pesquisas e estudos econômicos. Mora em São Paulo e caminhar pela cidade é um de seus hobbies favoritos ([email protected]).
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