Na jornada pelos fundamentos da qualidade de vida urbana proposta pelo Jaime no O VIZINHO, parente por parte de rua, o primeiro personagem a nos ser apresentado é o Gregório, um ser gregário.
Gregório representa a dimensão do coletivo, a qual expressa a raison d’être da cidade: “a rua existe para a gente se encontrar,” diz. Ressalta-se assim a camada constitutiva do espaço público neste artefato humano.
Na sequência das nossas conversas, inevitavelmente, retornaremos a esse tema, pois são múltiplos (e fascinantes) os desafios e as oportunidades embutidos nessa escala de trabalho no campo da arquitetura, do urbanismo, do paisagismo.
Hoje, o que gostaríamos de propor para a reflexão, contudo, é menos a expressão física desses espaços e mais a dimensão ontológica da cidade que Gregório busca destacar ao evocar a frase preferida do amigo de quem tinha muito orgulho, Vinícius de Moraes: “A vida é a arte do encontro”.
Toda arte requer uma mídia para se manifestar. As possibilidades de “a cidade” ser o palco, o cenário para tal florescimento, são duramente questionadas por pensadores de diferentes escolas ao longo da história, em particular a partir do ímpeto que os fenômenos de urbanização e metropolização adquiriram com a Revolução Industrial e a sucedente crítica da modernidade. Sem abrir muito o debate, apenas para situar o leitor com alguns exemplos, lembremos de Louis Wirth e Robert Ezra Park da Chicago School of Sociology, Georg Simmel na abordagem estruturalista, e os conceitos de alienação e fetichismo aplicados à leitura da vida urbana na interpretação Marxista que encontramos em Henri Lefebvre, Manuel Castells, David Harvey e Saskia Sassen, entre tantos outros. As manifestações da miséria da matéria e do espírito que testemunhamos cotidianamente nas nossas cidades, e nas cidades mundo afora, indubitavelmente, nos angustiam com tantas expressões pungentes de desencontro.
Desesperemos, pois?
Jamais (ou, pelos menos, não por muito tempo)!
Em última instância, talvez, os caminhos para o encontro ou o desencontro se alicercem naquilo que a Fábula dos índios Cherokee sobre os Dois Lobos ilustra: qual deles optamos por alimentar?
E, aqui, optamos por alimentá-lo com algumas das reflexões que nos foram legadas por dois expoentes do pensamento ocidental sobre a natureza da cidade (polis) enquanto espaço público, Platão e Aristóteles.
Adentrar em um diálogo com esses luminares da filosofia é tarefa que requer, para alguém sem formação no campo, como eu, calçar as proverbiais “sandálias da humildade” a fim de se familiarizar com a vastidão e profundidade deste repertório. É, contudo, absolutamente apaixonante se enfronhar na leitura de algumas destas obras (tais como A República, Górgias, Leis; Ética Nicômaco, Política) e de seus estudiosos com as lentes da cidade como potencial “cenário do encontro”. Em tradução livre, Aristóteles afirma, na obra a Política, “a cidade surge pelas necessidades da vida humana, mas permanece em existência pela necessidade do viver bem”. Lembremos que, na filosofia aristotélica, a “vida boa”, a “eudaimonia” (muitas vezes traduzidas como “felicidade”) seria a finalidade principal da existência e, a cidade, é o único lugar onde tal vida pode florescer.
Em que se pesem as semelhanças e diferenças entre esses dois pensadores, há em comum o entendimento da cidade – e aqui “a cidade” é o recorte epistemológico do espaço público, a dimensão aberta para a prática da vida coletiva – como o palco pedagógico para que um indivíduo possa atingir sua expressão em plenitude; o quadro de referência para o amadurecimento ético, o entendimento e o exercício da justiça; o terreno para o exercício da Política “com P maiúsculo” na busca do bem comum. Ou seja, sem a cidade, não há o encontro com o outro e, sem o encontro com o outro, somos privados da possibilidade de construir uma vida boa, feliz, justa, ética. Como coloca Platão no Livro II da República, a polis é como uma “lente de aumento” daquilo que carregamos em nossa alma.
Gregório, um ser gregário, carrega em sua alma que é no encontro com o outro no espaço público, na dinâmica da coexistência, que podemos exercitar os atributos da solidariedade e da empatia, sem os quais não podemos verdadeiramente enfrentar as pragas da exclusão e da violência. Ilustrando, com um pequeno trecho da letra de Minha Alma, de Marcelo Yuka (O Rappa),
As grades do condomínio
São para trazer proteção
Mas também trazem a dúvida
Se é você que está nessa prisão
Como podemos fazer melhor?
Coluna de autoria de Ariadne dos Santos Daher.
*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.