Sobre estar bem acompanhada

22 de dezembro de 2023

Anos 2000. Estou na FAU/UnB e faço um comentário crítico a um trecho da proposta que Frederico de Holanda está fazendo para o plano diretor do campus da UnB em Planaltina. Ele recua um pouco, mexe no bigode e fica matutando. No dia seguinte, ele, a minha principal referência acadêmica, meu orientador, o homem que me ensinou a gostar de cidade e a prestar atenção à urbanidade, um dos grandes nomes da pesquisa em arquitetura e urbanismo do Brasil, me liga para dizer: “Gabi, pensei naquilo que você disse.”

Outubro de 2023. Estou na mesa com Alain Bertaud e Victor Carvalho Pinto, jantando comida peruana e conversando. O francês, que mora em Nova York, conta casos sem parar, todos interessantíssimos, mas também nos ouve com interesse e atenção. Digo a ele que minha escala é a da calçada, não a do planejamento, mas isso não atrapalha nossa comunicação. Na sua palestra da manhã, falara do que lhe interessava e intrigava, do que achava que poderia ser útil compartilhar, de conclusões a que chegou e de coisas de que não tem certeza. Ele tem 84 anos, conhece o mundo todo, trabalhou em muitas cidades, é referência em nossas pesquisas e está ali, acessível, falante, gentil.

Um típico semestre acadêmico. Estou passando os slides para Mônica Gondim, porque aquela coisa de passar slides está sem pilha. Ela veio dar a tradicional aula de Transportes e Sistema Viário que lhe peço todos os semestres para minha turma de Projeto de Urbanismo 2. Dentre as várias coisas que ela já fez, esteve na equipe que propôs e implantou as ciclovias na orla do Rio de Janeiro para a Eco 92 e publicou o primeiro manual de ciclovias do Brasil. Ela fala pausado e com graça, alerta os estudantes para prestar atenção na realidade objetiva, não nos discursos, mostra prós e contras de soluções, diz que não há verdade absoluta no urbanismo e confessa coisas de que não sabe.

Outubro de 2008. Estou com Jan Gehl, na biblioteca do seu escritório em Copenhague, onde tem todas as publicações que todo urbanista gostaria de ter. Mostro a pilha de livros que comprei para ele autografar. Ele vê que está faltando um (“não tinha na livraria do Black Diamond”, explico), pega um exemplar na estante e me dá. Autografa todos, sem parar de conversar, contando do livro que está escrevendo (Cidades para Pessoas). Ele tinha acabado de chegar de uma viagem, e sua agenda estava cheia, mas dedicou duas horas do seu tempo para receber esta completa desconhecida, ouvir-me contar das pesquisas que estava fazendo para o doutorado e me convidar para tirar foto com a equipe.

Setembro de 2014. Estou em Buenos Aires, no Future of Places, o melhor congresso de que já participei. Tem gente de várias nacionalidades, mas todos falam a minha língua: a dos espaços públicos. Fred Kent, fundador e, à época, presidente da organização Project for Public Spaces/PPS, está lá, participando do evento, palestrando e circulando entre nós, pessoas comuns. Timidamente, minha amiga Bruna Kronenberger e eu vamos falar com ele. Nós duas tínhamos feito recentemente cursos do PPS em Nova York, mas é claro que ele não se lembraria de nós. No entanto, esse senhor, que trabalhou com o William Whyte no projeto que resultou no filme e no livro imperdíveis The social life of small urban spaces (A Vida Social dos Pequenos Espaços Urbanos), que desde a década de 70 trabalha com projetos de espaços públicos no mundo todo, conversou conosco de forma alegre, perguntou coisas sobre nossos trabalhos, contou um ou outro caso, pedindo nossa opinião.

Sonho que estou em Toronto, em algum momento antes de abril de 2006. Bato na porta da casa de uma rua residencial bem arborizada. Quem abre é Jane Jacobs. “Oi”, digo, entre nervosa e encantada. “Só queria lhe conhecer”. Ela, minha musa, ativista, a mulher que nos ensinou a observar a vida urbana e questionar o senso comum, dona de uma prosa irretocável e um humor ferino, referência para todos os estudos de espaços públicos, me olha com curiosidade, agradece a lembrança de Brasília que lhe trouxe e me convida para tomar um chá. Enquanto caminhamos em direção à cozinha, me pergunta como é que anda mesmo aquela cidade modernista.

No filme Steve Jobs, de 2015, dirigido por Danny Boyle, após uma cena tensa e desconcertante, Wozinak (Seth Rogen) fala para Jobs (Michael Fassbender): “Não é binário. Você pode ser talentoso e decente ao mesmo tempo” (Its not binary. You can be gifted and decent at the same time).

Meus autores são talentosos e (muitíssimo mais que) decentes. Dispostos a compartilhar, a ouvir, eles não só me inspiram pelo que ensinam, mas também pelo que são.

Que sorte, a minha.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.

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Arquiteta, professora da área de urbanismo da FAU/UnB. Adora levantamento de campo, espaços públicos e ver gente na rua. Mora em Brasília. ([email protected])
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