Oportunidade perdida – um breve relato sobre o Projeto Nova Luz

13 de fevereiro de 2024

A expressão “Cracolândia”, hoje usada no país todo como sinônimo de área urbana degradada e ocupada por usuários e traficantes de drogas, surgiu para identificar um local no centro velho da cidade de São Paulo, nos arredores da Estação da Luz. Cotidianamente lembrada em matérias jornalísticas em razão de sua decadência e violência, a região foi objeto de uma iniciativa que, se implantada, poderia ter mudado radicalmente seu destino: o Projeto Nova Luz – uma oportunidade perdida em função da incapacidade de governo e sociedade de formular e executar políticas públicas urbanísticas sem que o necessário debate sobre suas condições e alcances fosse contaminado ideológica e politicamente.

Em maio de 2009, foram editadas no Município de São Paulo as Leis 14.917 e  14.918, que regulamentaram o instrumento da concessão urbanística e autorizaram sua aplicação na área da Nova Luz, no centro da cidade. O projeto, a ser implantado utilizando esse inédito instrumento, deveria observar as diretrizes de preservação e recuperação do patrimônio histórico, cultural e artístico; promover o equilíbrio entre habitação e atividade econômica e a implantação de unidades habitacionais destinadas à população de baixa renda; bem como proporcionar incentivo à manutenção e expansão da atividade econômica instalada. O projeto, ainda, deveria ter uma execução planejada e progressiva, de modo a devolver à região do bairro de Santa Ifigênia, dotado de localização privilegiada e com ampla rede de infraestrutura de transportes, o vigor que teve nos anos áureos da cultura cafeeira no Oeste Paulista.

O novo instrumento previa a delegação da execução do projeto urbanístico do Município – incluindo a promoção das desapropriações necessárias a tanto – , sendo o concessionário remunerado exclusivamente pela sua atuação na área, obtendo recursos especialmente pela alienação ou locação de imóveis, inclusive dos desapropriados e das unidades imobiliárias a serem construídas. O desenho final do projeto, a partir da interação com a sociedade civil e com os órgãos de controle, prometia duplicar a área construída e os postos de trabalho locais, além de implantar quase 5.000 novas unidades de habitação de interesse social e de mercado popular. A intervenção no território seria realizada preferencialmente pelos proprietários, isoladamente ou em conjunto com o concessionário, somente havendo a desapropriação de imóveis na impossibilidade de implantação do projeto nestes termos. Os imóveis tombados deveriam ser restaurados e o viário, as praças e demais áreas públicas seriam mantidas pelo concessionário. Um belo projeto, que jamais foi executado. Mas então, o que deu errado?

As adversidades enfrentadas pelo Projeto Nova Luz foram amplamente divulgadas na imprensa. As reportagens sobre a concessão e cassação de medidas liminares, bem como a divulgação do projeto e das críticas contra ele lançadas ocuparam, durante todo o período de sua elaboração, as páginas dos principais jornais e redes de televisão do Estado e do País. Em um ambiente de discussão altamente ideológico, em que pouca ou nenhuma atenção se dava aos reais termos do conteúdo dos estudos, houve o ajuizamento de ações diretas de inconstitucionalidade contra a lei, ações civis públicas e ações populares contra seus termos, questionamentos de tribunais de contas, inquéritos civis de diversas promotorias de ministérios públicos estadual e federal, indagações e procedimentos das polícias civil e federal, manifestações, discursos, campanhas… Os argumentos utilizados eram, em síntese, uma possível inconstitucionalidade do instrumento da concessão urbanística, o eventual benefício ao concessionário advindo da implantação do projeto, o risco da expulsão da população moradora e problemas no processo participativo de elaboração do projeto.  

Apesar de algumas liminares inicialmente concedidas na primeira instância, o Projeto Nova Luz sobreviveu a todos os questionamentos jurídicos e se afirmou como uma alternativa legal e viável para a requalificação do centro de São Paulo, inclusive influenciando a modificação da legislação federal sobre o tema e promovendo importante consolidação jurisprudencial. Em sucessivos acórdãos, o Tribunal de Justiça considerou que não houve cerceamento à participação popular, que o estudo de impacto ambiental foi adequado e que é legítima a desapropriação promovida por concessionário de função pública. 

O projeto só não resistiu à mudança da gestão política: no ano de 2012, em um dos seus primeiros atos, o novo governo municipal, de grupo político distinto do anterior, decidiu arquivar a iniciativa sob o argumento não comprovado de sua inviabilidade econômica.

Como legado, o Projeto Nova Luz deixou um importante aprendizado no campo da participação dos interessados e controle da Administração Pública em projetos de urbanização – os diversos incidentes judiciais e administrativos fizeram com que os processos público-participativos desta natureza fossem aprimorados, sendo a página Gestão Urbana e seu amplo repositório de informações desta natureza o maior exemplo disso. Ademais, além dos já apontados aprimoramentos na legislação local e federal sobre o tema, o Projeto Nova Luz fez evoluir, também, a percepção sobre as possibilidades e limites da transformação urbana a partir de projetos urbanísticos. 

A oportunidade perdida pela cidade de São Paulo, contudo, hoje cobra seu preço. A degradação da área hoje denominada Cracolândia, a sensível diminuição na atividade econômica local, a insegurança e a crescente desocupação da área (a despeito dos esforços e programas do Poder Público para a reversão deste quadro) mostram que o custo da não implantação dos projetos urbanos também é alto e que é preciso que os debates e conclusões sobre seus termos sejam realizados deixando-se de lado preconceitos e visões ideologicamente comprometidas. 

A melhoria da vida nas cidades depende de um planejamento urbano efetivo e atuante e a construção participativa de projetos aderentes à realidade que se pretende transformar é o ponto de partida deste processo.

José Apparecido
Sócio do escritório Apparecido e Carvalho Pinto
Consultor em direito urbanístico e administrativo
Procurador do Município de São Paulo

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