O transporte alternativo no Brasil: competindo com o ônibus

14 de julho de 2023

A redução das taxas de importação e abertura econômica brasileira ao mercado estrangeiro na década de 1990 causou um efeito inesperado sobre o transporte coletivo urbano: Topics, Bestas e demais veículos tipo Kombi entraram no Brasil respondendo a uma demanda da população por um transporte coletivo mais rápido, direto, sem baldeações, barato e (razoavelmente) confortável, trazendo competição por passageiros dentro do mercado e não pelo mercado como previa a legislação brasileira, logo este novo meio de transporte recebeu a denominação de transporte clandestino. Também chamado de “transporte alternativo” ou “perueiros”.

O transporte alternativo (re)surgiu nas cidades brasileiras em meados da década de 90, inicialmente em áreas com deficiência de atendimento por transporte coletivo regular. Foi nos fins da década que a situação ganhou dimensões alarmantes, com rápido crescimento do número desses veículos tipo Kombi se disseminando por toda a cidade, em aberta competição com os ônibus.

Semelhante ao que se passava em Lima (Peru), Cidade do México (México), Santiago (Chile), Manila (Filipinas) e muitas outras cidades, a expansão da oferta de transporte coletivo propiciada pelos alternativos veio, de certa forma, ao encontro de uma demanda reprimida e da insatisfação popular com as condições dos serviços convencionais oferecidos pelas concessionárias.

Pesquisa encomendada pela Prefeitura de Campinas junto dos usuários dos serviços em julho de 1997 identificou uma ampla aprovação dos perueiros pela população e apoio à sua regularização (Bicalho, 2003). Para saber mais sobre transporte alternativo e suas variações pelo mundo afora, Jitney, Matatus, Jeepney, Silor-leks, etc., sugiro ler Balassiano (1996), Balassiano & Alexandre (2013), Cervero (2000), Cervero & Golub (2007) e Dimitriou & Gakenheimer (2011).

A proliferação à margem da lei dos perueiros mostra, ao mesmo tempo, o grande benefício que o livre mercado e a abertura do Brasil ao exterior trouxeram ao pequeno empreendedor e a falha do poder municipal em prover transporte como especificado na Constituição Federal.

Estes pequenos empreendedores, muitos deles em situação de desemprego, viram uma oportunidade de negócio na compra financiada de veículos para serviço informal de transporte, ligando bairros da periferia ao centro da cidade, hospitais, supermercados e serviços públicos de modo geral. Oferecendo um serviço flexível sem pontos, linhas, horários e baldeações, com veículos pequenos e de comportamento no trânsito similar a um carro de passeio e preço competitivo, os perueiros caíram no gosto da população (Bicalho, 2003), tendo crescido de forma bastante expressiva em São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Fortaleza, Salvador, Brasília, Manaus, Natal, Vitória, entre outras (NTU & ANTP, 1997).

Porém, com a massificação desse modal a situação ficou fora de controle: os perueiros ultrapassavam os ônibus para pegar passageiros nos pontos, o chamado cream skimming, os veículos eram de baixa qualidade, as condições trabalhistas eram precárias, a competição nas ruas se exacerbou causando acidentes e violência (NTU & ANTP, 1997). O poder público então resolveu agir.

Um documento balizador na época foi o “Transporte por vans — o que considerar no processo de regulamentação?” de 1996 do Professor Ronaldo Balassiano (1996). Balassiano advogava a necessidade do poder público em reconhecer o contributo importante dado pelo sistema alternativo tanto à mobilidade das populações quanto às oportunidades de trabalho, devendo-se buscar formas de preservar este sistema ao invés de proibi-lo completamente.

Vários municípios decidiram então regularizar esses serviços geralmente recorrendo ao mecanismo das permissões, limitadas a um número determinado pelo regulador e cobertura espacial muito específica e restrita, com o objetivo de suprimir qualquer competição possível com a concessionária de ônibus, colocando muitas vezes os perueiros como complementares/alimentadores do sistema concessionado.

Foi louvável a iniciativa de legalização do transporte alternativo, trazendo assim mais transparência, responsabilidade e segurança para a indústria. Todavia tal estrutura regulatória desconsidera a parte disruptiva do transporte alternativo no que toca ao serviço diferenciado para o cliente, mais parecido com o táxi, e trata-o como uma extensão do sistema de transporte concessionado.

Ao forçar a complementaridade do sistema alternativo com o sistema concessionado o poder público criou, invariavelmente, pontos de baldeação. Antes da regulação os perueiros levavam os passageiros ao centro sem baldeações, hoje, no sistema regulado, o passageiro é obrigado a baldear num terminal de integração.

A partir destas constatações fica evidente que o regulador ignorou a componente inovadora intrínseca que difere o transporte alternativo do transporte concessionado: o primeiro está totalmente orientado ao lucro, logo busca atender as demandas dos passageiros de forma rápida, barata e sem baldeações, enquanto o segundo está orientado, pelo poder municipal, à cobertura espacial e/ou temporal da cidade.

Definir as mesmas regras aplicadas ao segundo (linhas, horários, tarifas, etc.) sobre o primeiro elimina a componente inovadora daquele serviço. Importa perceber que a inovação vai sempre acontecer, quer os reguladores queiram, quer não. Cria-se assim um ciclo: o mercado traz inovação disruptiva; o regulador cerceia o ímpeto inovador; o mercado traz novamente inovação.

Para finalizar este ponto importa referir que o transporte alternativo ilegal ainda persiste no Brasil. Um exemplo marcante são os Cabritinhos nas favelas do Rio de Janeiro. As favelas simplesmente não funcionam sem transporte alternativo, ignorar a necessidade dos mesmos só piora ainda mais a vida dessas populações.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.

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