Lima

19 de janeiro de 2024

Esta é outra história de amor

Lima foi amor à primeira caminhada. Por circunstâncias familiares, estive aqui pela primeira vez em 1996 e, de 1996 a 2008, vim aqui 12 vezes, sempre ficando uns 15 dias. Às vezes ficava só em Lima, às vezes viajava. Ano passado voltei. Vi que o amor continuava o mesmo. Resolvi passar um mês e estou aqui, agora. Pense numa pessoa feliz.

(Claro que não me apaixonei pela Lima verdadeira, completa. Não dá para gostar senão daquilo que se conhece, e ninguém conhece uma cidade inteira. Fui-me apaixonando pelos trechos que fui conhecendo aos poucos, ao longo dos anos: Barranco, Miraflores, Cercado de Lima, San Isidro, Surquillo, Chorrillos, Pueblo Libre).

E o que eu vim fazer aqui? Eu não vim para, daqui, sair para outros destinos peruanos: Cusco, Machu Picchu, Huaraz, Paracas, Ica, Nazca, Chachapoyas, aos quais já fui, e outros onde não estive.

Eu vim aqui para caminhar.

Vim para caminhar por estas ruas conectadas, numa malha cheia de alternativas de trajeto, onde novas adições deram continuidade ao tecido preexistente e não nos deixaram no labirinto de cruzamentos em T. Para andar por calçadas planas, absolutamente contínuas e uniformes, embora estreitas, com meios-fios baixinhos porque não há preocupação com sarjetas – em Lima não chove.

Vim para me beneficiar de uma cidade compacta e variada, com um sistema viário econômico, sem muitas vias superdimensionadas, que delineia quadras raramente maiores que 150 metros, nas quais a divisão dos lotes privilegia frentes estreitas e onde inexistem recuos laterais. Vim para ver os prédios e as casas lado a lado, formando paredes contínuas que delimitam lindamente os espaços públicos, para onde se voltam com portas, janelas e – minha paixão – varandas! Vim para olhar para as varandas abertas, onde se encontra um pouco da cara de quem mora naquele apartamento: móveis, plantas, objetos pendurados. Vim para bisbilhotar a vida dos outros.

Vim para andar pelas vias mais importantes e movimentadas, comerciais – cujo desenho favorece sua legibilidade e, consequentemente, nossa orientação. Vim passear ao longo de prédios com térreos totalmente ativos, cheios de novidades. Vim para me deparar com todo tipo de comércio e serviços, dos chiques aos populares, todos muito próximos uns dos outros. Vim para encontrar a diversidade de pessoas que esses estabelecimentos atraem.

Vim para percorrer as ruas mais locais e sossegadas, onde os prédios e casas que não têm recuos de frente não raro nos surpreendem com uma livraria aqui, uma loja de uniformes ali, uma mercearia acolá. Vim para ver que os recuos de frente, quando existem, frequentemente permitem uma permeabilidade visual de seus jardins frontais e suas bougainvilles. Vim para observar a senhorinha sair com seu carrinho de feira, o rapaz passear com o cachorro, o pessoal da limpeza urbana jogar água na base de postes e muros para lavar o xixi dos cachorros.

Vim para desfrutar das dezenas de pracinhas fofas e bem configuradas, que salpicam de verde esta cidade feita no deserto, todas elas arborizadas, com muitos bancos e uma escultura homenageando alguém. Vim para ver visitantes e locais dançando no teatro de arena do Parque Kennedy, para ver os vendedores de um dos artesanatos mais lindos do mundo, para comer picarones na rua. Vim para sentir a beleza de olhar para o pacífico de uma altura de 70 metros, enquanto percorro a sequência de parques da orla de Miraflores. Vim para descer até a praia, cheia de pedras e pouco convidativa, para molhar meu pé na água fria e pensar que praia boa mesmo é no Brasil.

Vim para olhar as pessoas se apropriando dos lugares, de dia e de noite. Para ver mulheres sozinhas ou com suas amigas e filhos, caminhando ou descansando despreocupadas – eu mesma sendo uma delas –, um ótimo indício de que os lugares transmitem sensação de segurança. Vim pra ser mais uma nestas calçadas movimentadas.

Sem ignorar seus problemas (a gente sabe dos defeitos de quem ama), vim para adquirir repertório nesta cidade latino-americana que, embora reflita uma sociedade injusta e desigual como a nossa, tem tratado de oferecer bons espaços públicos para seus cidadãos.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.

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Arquiteta, professora da área de urbanismo da FAU/UnB. Adora levantamento de campo, espaços públicos e ver gente na rua. Mora em Brasília. ([email protected])
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