Espaços públicos não devem ser aquilo que sobrou

24 de novembro de 2023

Toda vez que os espaços públicos resultam de sobras, e não de intenção, temos um problema

Tempos atrás, vi no Instagram imagens de um subúrbio de Copenhague chamado Brøndby, onde há conjuntos de casas organizados como pizzas. Em 39 hectares, estão distribuídas 24 pizzas, de 80 até 115 metros de diâmetro, possuindo de 12 a 24 fatias (lotes unifamiliares) e uma entrada: o acesso às casas se dá pelo miolo do conjunto.

Os conjuntos são delimitados por cercas vivas, o que faz com que entre uma pizza e outra tenhamos paredes cegas,  ruas locais de acesso e… grama.

É daquelas coisas que chamam a atenção, ainda mais porque a grama, as cercas vivas, os jardins e as casas estão todos bem cuidados. Os comentários no post são da ordem do “lindo”, “incrível“ e “adorável”. Meu comentário é apenas “socorro!”

A imagem que me vem à cabeça é de uma pessoa abrindo massa de biscoito numa bancada, cortando rodelas com um molde circular e colocando-as na assadeira. O que ficou na bancada? O que sobrou. A massa entre as rodelas, que a gente obviamente mistura de novo, abre de novo, corta de novo, coloca na assadeira de novo, e assim sucessivamente, até acabar. A gente não desperdiça massa, né?

Fiz uma conta rápida. Uns 55% do espaço é ocupado pelos lotes e suas ruas de acesso, e uns 5% é ocupado pelo sistema viário que leva às pizzas e uma ou outra construção isolada. O restante, 40%, é área livre. 156 mil metros quadrados de área residual. Do que sobrou. De grama.

Daria para falar um monte de coisas sobre esse lugar. Do desperdício de solo urbanizável, já que as áreas livres não têm função ecológica; ao sistema viário em árvore e suas implicações; passando pela homogeneidade, monofuncionalidade, baixa densidade e dependência do automóvel. Mas, como esta coluna trata de espaços públicos, vamos ao ponto: os espaços públicos ali são o que sobrou após alguém fazer esse desenho “tão legal”.

“Ah, mas não sobrou, é área livre pública para as pessoas usarem, se encontrarem nela.”

Bem, sendo na Dinamarca – onde as chances de estar tudo bem mantido são tão altas quanto baixas são as chances de se morrer de medo de passar sozinho entre as pizzas à noite – , a gente até pode olhar a coisa com certa simpatia.

Podemos, inclusive, imaginar crianças escandinavas correndo pela grama no verão ou fazendo bonecos de neve no inverno. Mas a literatura, os exemplos empíricos e eu podemos garantir que, se isso ocorrer, provavelmente vai ser em baixa frequência, em trechos muito pequenos dos locais mais visíveis, próximos às entradas, onde algo construído sirva de limite ou referência.

As pessoas tendem a não utilizar espaços amorfos, cujos limites não identificam.

Christopher Alexander, um dos meus queridos estudiosos da urbanidade, matemático e arquiteto austríaco, falecido em 2022 (recomendo a leitura do texto de Vinícius Netto sobre ele), fala, no famoso livro Uma linguagem de padrões (1977), que “espaços externos que são simplesmente sobras entre edifícios, geralmente não serão usados”.

Ele diz que há dois tipos de espaço exterior: o positivo e o negativo. O negativo sendo justamente aquele amorfo, residual, que a gente não identifica onde começa ou onde termina, que a gente não consegue muito chamar de lugar.

O espaço exterior positivo seria o contrário disso, aquele bem configurado, cujos limites a gente facilmente reconhece. Aquele espaço que tem um certo grau de fechamento, que pode ser representado como um polígono convexo (vou te ajudar aqui: polígono convexo é aquele no qual você pode ir, numa reta, de qualquer ponto para qualquer ponto, sem sair dele. De nada!).

A Teoria da Sintaxe Espacial também usa o conceito de espaço convexo e tem procedimentos e ferramentas muito úteis para estudar os espaços públicos a partir desse entendimento. Esses lugares geralmente são desenhados, pensados a priori. Vêm primeiro.

Uma boa forma de identificar se o espaço de que estamos falando é positivo ou negativo é tentar marcar um encontro nele. Se for fácil descrever o local do encontro, então ele tende a ser positivo. É nesse tipo de lugar que a gente gosta mais de ficar.

Se quiser ver que lugares como Brøndby não são privilégio escandinavo, veja esse trecho do Setor de Clubes Sul, em Brasília. Lotes redondos, no mesmo estilo “vamos causar com esse desenho aqui”.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.

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Arquiteta, professora da área de urbanismo da FAU/UnB. Adora levantamento de campo, espaços públicos e ver gente na rua. Mora em Brasília. ([email protected])
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