De onde vêm os pipoqueiros?

16 de fevereiro de 2024

Como transformar um figurante em protagonista em uma única conversa.

Já tem tempo, isso. Era a saída da escola dos meus filhos, e paramos para comprar pipoca.

Os pipoqueiros sempre gozaram de confiança frente às famílias. Ouvi várias vezes da minha mãe que não aceitasse balinhas de estranhos, mas nunca ouvi advertência similar relacionada a saquinhos de pipoca. Os carrinhos de pipoca ativam e perfumam o espaço público, ajudando a iluminá-lo à noite, criam um raio de segurança ao seu redor, oferecem um produto que agrada a todas as idades a um preço acessível. Eles são atemporais, sustentáveis, imbatíveis.

Ficamos ali, ao lado dele, comendo e conversando, e de repente fiquei intrigada com algo que nunca me tinha ocorrido: de onde vinha o pipoqueiro?

Começando a tentar responder à questão a partir do quesito moradia, sendo a escola localizada no Plano Piloto de Brasília, as chances de que ele morasse nas proximidades eram praticamente nulas. Pipoqueiros não costumam morar na Asa Sul ou Asa Norte e adjacências, onde a moradia é cara, porque escassa e pouco variada (entre outras coisas). Nem eles, nem 92% da população do Distrito Federal, segundo a PDAD 2021.

Pensando no quesito deslocamento e clientela, se todas as escolas terminavam as aulas mais ou menos nos mesmos horários, o que ele ficava fazendo até aparecer por lá? Sim, porque ele aparecia. Nós nunca o víamos chegando ou saindo. Ele sempre estava lá, na saída. Não parecia provável que ele viesse de onde morava só para estar lá, naquele horário. Não tem tanto consumidor assim, numa escola só.

E o carrinho, gente? Como ele trazia esse carrinho (que, acabo de ver aqui na internet, pesa uns 40 kg, mede 80 cm x 70 cm, e tem mais de 1,50 m de altura)?

Fui perguntar para ele. Não, ele não morava na Brasília de Lucio Costa. Morava numa RA distante uns 30 km, na porção sudoeste do DF (Santa Maria? Recanto das Emas? Não me lembro mais), e vinha de ônibus. Ele conhecia os horários de saída de vários tipos de escola da Asa Norte, onde transitava, e fez um roteiro que lhe permitia ficar ativo desde o meio-dia até umas 9 da noite, horário em que terminava a primeira aula de alguma faculdade. Estava presente nos diferentes horários de saída dos estudantes do turno da manhã, durante a tarde ficava em saídas de escolas de reforço, cursinho ou de línguas, aí ia para a saída da escola dos meus filhos, depois para a escola de línguas ao lado e para a faculdade. Isso o obrigava a empurrar o carrinho de leste a oeste, passando pelas famigeradas passagens subterrâneas do Eixão. Ossos do ofício.

E o carrinho? Não dá para trazê-lo e levá-lo no ônibus. Ele respondeu algo como: “Ah, essa é uma história bacana. Muito tempo atrás, um pai de aluno me ofereceu para guardar o carrinho na garagem da casa dele, perto de alguma das escolas onde eu trabalho” (Infelizmente não perguntei como ele fazia antes disso). “Foi assim durante muitos anos. Vinha de ônibus, pegava o carrinho, trabalhava o dia todo e, antes de voltar para casa, deixava na casa dele. Um dia ele vendeu a casa, e disse para os compradores que uma das condições seria eles continuarem deixando eu guardar meu carrinho ali. E estou assim até hoje.”

A conversa me encantou. Deixei de ver o pipoqueiro como figurante da minha vida, e da dos meus filhos, para enxergá-lo como protagonista de sua própria vida: mais um cidadão que se movimenta na cidade, tomando decisões, encontrando gente, fazendo combinados. Busco sustentar esse olhar a todas as pessoas que exercem o comércio ambulante e, sempre que tenho oportunidade, busco conversar com elas.

Onde moram e como se deslocam? Onde a cidade entra para atrapalhar ou ajudar? Como o desenho da cidade e seus sistemas de mobilidade poderiam ser, para tornar suas vidas mais leves? Onde vão ao banheiro, se passam aqui o dia todo?

Compreender como os ambulantes se organizam para desenvolver suas atividades nos espaços públicos nos faz cientes das desigualdades socioespaciais, dos desafios que a cidade impõe a quem leva seu produto consigo e de como as pessoas são capazes de superar obstáculos para exercer seu ofício e contribuir com a vida cotidiana.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.

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Arquiteta, professora da área de urbanismo da FAU/UnB. Adora levantamento de campo, espaços públicos e ver gente na rua. Mora em Brasília. ([email protected])
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