As dinâmicas sociais resistem nas ruas da Índia

2 de agosto de 2023

O país mais populoso do mundo ensina que as ruas devem ser ocupadas pelas pessoas, e clama por desenho urbanos que acolham os usos sociais.

Recentemente tive a oportunidade de conhecer a Índia, fui de férias, mas urbanista não tira férias, e sim observa e experimenta sem pranchetas e métodos. Principalmente quando se atua com deslocamentos a pé e a relação das pessoas e das atividades nas ruas e cidades. Então compartilho, sem método, o que acredito ser a maior reflexão depois de 1 mês e mais de 12 cidades percorridas.

Caminhar e se movimentar na Índia é um exercício de observação e de experienciação intensa que ajuda a entender como as ruas devem acolher e não ordenar os usos. No país mais populoso do mundo — com população mais de 6 vezes a do Brasil e com menos da metade de território brasileiro — TUDO acontece nas ruas! 

Quando digo tudo, é tudo mesmo, tem festejos e peregrinações religiosas todos os dias (afinal a principal religião, o hinduísmo é politeísta, e com isso todo dia há uma deusa ou deus para celebrar), tem compras e vendas, tem cortejos de casamento, tem pessoas lavando roupas, tem muita gente se deslocando com uma grande diversidade de veículos e modos, tem crianças brincando, tem animais sobrevivendo e muito mais.

A primeira sensação é de não conseguir se fixar em nada, e apenas ver e ouvir (as buzinas podem ser atordoantes) uma bagunça generalizada. O senso comum tende a pensar que é preciso “ordenar” as ruas, com mais semáforos, com multa para quem circula no meio das pistas, vias mais amplas, entre outros elementos que nos fizeram acreditar que levam a um “bom funcionamento da cidade”.

Ruas amplas e sem espaço para as pessoas. (Imagem: Leticia Sabino)

Mas ao se dar o tempo para um olhar mais atento, mais lento e mais cuidadoso é possível começar a entender que esses elementos que se associa a “ordem” são justamente os que sufocam a vida na cidade, e mais colocam em risco e vulnerabilizam o caminhar, as crianças no caminho para escola, as pessoas mais idosas, as pessoas com deficiência e as mulheres que caminham com saris nas diversas atividades de cuidado. 

Gente foi feita para prosperar e não para ser excluída, oprimida ou “ser útil”. 

Assim como Krenak me relembrou como a vida não foi feita para ser utilitária mas para ser vivida, o mesmo se estende às cidades, que são ambientes que integram e cruzam muitas vidas. 

Para isso é preciso pensar nas funções que temos direcionado o principal espaço das cidades, as ruas. De acordo com o urbanista francês François Ascher, as ruas das cidades têm três funções: trânsito, acesso e recepção. E muitas vezes o que mais se sente falta nas cidades é serem vibrantes com atividades diversas. Nas ruas das cidades indianas tudo já está acontecendo, por isso é urgente acolher — antes que a dinâmica social que tanto resiste sufoque por completo.

Eu e Debanil posando de urbanistas no projeto One Green Mile. (Imagem: Leticia Sabino)

Em Mumbai conheci o projeto One Green Mile (Uma Milha Verde) do Estúdio POD (people oriented design), guiada pelo meu amigo e urbanista Debanil um dos autores do projeto. Eles transformaram um pequeno trecho embaixo de um viaduto expresso em uma de uma via arterial, super carregada de veículos em área de convivência.

Pessoas estudando debaixo do viaduto. (Imagem: Leticia Sabino)

Criaram até um espaço para ESTUDO — pois identificaram que faltava para quem mora no entorno! E as pessoas estudam em uma das vias com maior fluxo da cidade, pois o desenho estimulou e criou condições para aquele espaço ser vivido, e assim o que parecia ser inimaginável emergiu. 

Não há um desenho e soluções únicas para todas as ruas, as cidades são redes complexas de vias que precisam re-equilibrar suas funções, priorizando o que se tem de mais potente. Combinando projetos que pedestrianizem algumas áreas, outras apenas para transporte ativo e rickshaw, outras que tenham boas linhas de transporte público. Não é simples, mas a Índia me ensinou a olhar para as ruas que eu circulo, atuo e estudo, curiosa sobre quais dinâmicas sociais já foram sufocadas e como fazer ruas que se possa emergir o melhor da convivência. Há outras questões para observar, como o transporte de carga, o acesso a emprego e renda, entre várias outras que não podem ser ignoradas.

Sou insistente em dizer que se pudermos ver e fazer das ruas mais praças e mais naturais, mas lugares e menos vias de fluxo, poderemos caminhar para melhorar a qualidade de vida nas cidades! E que bom, que mesmo sem condições, tantas dinâmicas resistem nas ruas da Índia sem deixar a lógica da produção e das vias ordenadas se sobreponha, ainda que de forma sofrida.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.

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Caminhante. Mestre em Planejamento de Cidades e Design Urbano pela UCL em Londres. Fundadora e Diretora do Instituto Caminhabilidade. ([email protected])
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