Apartheid brasiliense

16 de fevereiro de 2023

Entre as visões equivocadas que existem sobre Brasília, uma é aquela que imagina que seus moradores vivem em áreas de baixíssima densidade — cercados por um verde enorme e inóspito. É uma espécie de mito. Porque, na realidade, quase 95% dos habitantes da área metropolitana da capital não moram no Plano Piloto.

Apenas uma parcela pequena dos brasilienses mora nas famosas superquadras de Lúcio Costa e Oscar Niemeyer. Brasília, assim, leva ao paroxismo um problema de outras cidades brasileiras: regras que impedem a ocupação das áreas mais centrais, expulsando uma multidão para periferias distantes das melhores oportunidades da metrópole. 

Muitos moram não só nas cidades-satélites (regiões dentro do Distrito Federal) mas também no Entorno (municípios fora do DF). Distantes, são frequentemente lugares bem mais densos, pelo menos para parâmetros brasilienses (chegam a densidades equivalentes a do Itaim ou Mooca em São Paulo). Este padrão de densidade — bem menor no centro econômico, maior em áreas afastadas dele — é incomum na comparação internacional. 

Segundo Alain Bertaud, urbanista francês que fez carreira no Banco Mundial, o padrão atípico de densidade de Brasília é comparável ao de Johanesburgo, na África do Sul — influenciado por uma política que literalmente queria dividir a sociedade, o apartheid. A capital brasileira, involuntariamente, criou um modelo de segregação equivalente.

Sem densidade ordenada nas áreas centrais, acaba-se tendo densidade desordenada em áreas distantes. É no DF o que pode ser a maior favela do Brasil (Sol Nascente). Não à toa, pouco anos antes de morrer, Oscar Niemeyer lamentava que a cidade que ajudou a construir como uma utopia de igualdade tenha se transformado em uma com “divisão intolerável”. Entre as 27 unidades da Federação, o Distrito Federal é a que tem pior distribuição de renda. 

Este laboratório urbano de desigualdade torna Brasília um objeto de discussão interessante não apenas para brasilienses, mas para os interessados em cidades em geral. Afinal, em maior ou menor grau, outras metrópoles brasileiras padecem do mesmo desafio fundamental: regras artificiais criadas pelo Poder Público bloqueando o acesso dos cidadãos à sua economia.

No caso emblemático de Brasília, que enquanto cidade tem o 3.º PIB do Brasil, é bastante difícil que trabalhadores mais pobres de outras regiões migrem para aproveitar potenciais oportunidades na cidade que poderiam ocorrer em consequência do elevado gasto público ali presente.

Há grande restrição na oferta de imóveis, especialmente ao redor do Plano Piloto, o que leva um custo de vida elevado e longas distâncias para serem percorridas para usufruir oportunidades de ocupação, educação, cultura. Essas restrições foram criadas pelo homem, isto é, há vastas áreas sem ocupação e outras com baixa densidade, enquanto grande parte da população tem que habitar em Goiás para conseguir trabalhar no DF.

Há excesso de céu e muito espaço bem antes das periferias de Brasília, tanto em áreas em que já existe a ocupação urbana quanto em áreas ainda sem ocupação. Isso interrompe a sua vocação de receber imigrantes das regiões mais pobres do Brasil e desenvolver o País fora da área litorânea — um objetivo da sua própria fundação. Ou “a destinação integracionista da nova capital”, nas palavras do presidente Juscelino Kubitschek.

Os sonhos brasilienses de Niemeyer e JK precisam ser recuperados. Sonhos de igualdade e de crescimento econômico. Esta coluna será sobre eles.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.

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