Amar com olhos abertos

14 de abril de 2023

Os lugares da sua vida são mesmo tão legais assim?

Quem se interessa por espaços públicos provavelmente já ouviu falar do arquiteto dinamarquês Jan Gehl. Ele é bem conhecido pelo seu livro Cidade para pessoas, de 2010, embora eu goste mais do Life Between Buildings (Vida entre edifícios), seu livro de estreia, lançado em 1971, quando ele tinha 35 anos de idade e eu estava nascendo.

Pertencendo ao rol dos autores preocupados com cidades vivas e humanas, Gehl está atento à relação do desenho dos lugares com a presença/ausência de pessoas. Fala sobre a necessidade de se conhecer o ser humano e seu comportamento, utilizando técnicas de observação e contagem, para se poder projetar cidades melhores.

Ele tem mais de 50 anos de serviços bem prestados à arquitetura. Seu domínio sobre o assunto lhe permite olhar para uma determinada rua, um determinado bairro, uma determinada cidade, e constatar uma série de coisas que são recorrentes em ruas, bairros e cidades com os mesmos padrões espaciais que ele já viu e estudou. Isso porque há uma consistência na relação entre esses padrões e a vida pública que eles favorecem (ou dificultam), mesmo que haja diferenças culturais, geográficas, climáticas.

Só que aí, no Cidade para Pessoas, ele escreve um capítulo chamado A síndrome de Brasília (que ele trata apenas como o Plano Piloto): “Vista do alto, Brasília é uma bela composição (…) No entanto, a cidade é uma catástrofe ao nível dos olhos”. E reforça essa afirmação em uma palestra proferida em 2017. “But down, where people are, Brasília is shit” (não vou traduzir porque esta é uma coluna familiar, gente. Por favor, usem o Google).

Imaginem a nossa reação, aqui na capital! “O que ele sabe de Brasília?” “Quanto tempo ficou aqui para falar isso?” “Ele que vá pra… Copenhague!” Em sua generalização, ele cometeu a gafe de ignorar dinâmicas próprias, que só um tempo maior de conhecimento trazem, além de violar uma regra fundamental: a cidade da gente é como a família da gente; a gente pode falar mal, os outros, não!

Mas… ele está de todo errado? Não. “Espaços urbanos muito grandes e amorfos”? Temos. “As grandes áreas verdes são atravessadas por caminhos abertos traçados pela passagem das pessoas”? Sim. Deslocar-se a pé para as atividades cotidianas, no Plano Piloto (e em Brasília toda), é para os fortes. A escala do pedestre é largamente negligenciada, e quem estuda espaços públicos bate o olho no desenho da cidade e constata isso. Nem é preciso morar aqui, falar português, saber quem foi Lucio Costa.

É duro ver nossa cidade, nosso bairro, nossa rua serem criticados. São lugares do nosso cotidiano, há memórias, histórias, afetos entrelaçados a eles. Mas… vamos lá! Pense na rua onde você mora, onde pega as crianças na escola, onde trabalha. Como são, verdadeiramente, esses lugares?

São agradáveis? São bonitos? A gente se sente seguro neles? São espaços convidativos, interessantes? Dá vontade de ficar neles por mais tempo além do necessário? E se a gente quiser ficar, é possível? A gente caminha por eles de forma tranquila, sem nem se dar conta? Dá vontade de voltar?

Talvez não sejam muitas as respostas positivas. Mas, positivas ou não, é importante começar a buscar os porquês, a perceber o que o desenho dos lugares tem a ver com isso: tamanhos dos lotes, térreos dos edifícios, muros, calçadas, travessias, arborização, iluminação, mobiliário.

Se desenvolvermos uma visão crítica dos espaços públicos que abrigam nosso dia a dia, poderemos cada vez mais treinar o nosso olhar para identificar aquilo que os faz serem péssimos ou ótimos na escala do pedestre.

A gente vai continuar amando nossa cidade, mesmo depois de reconhecer seus problemas. Só que agora vai saber onde tem que melhorar.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.

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Arquiteta, professora da área de urbanismo da FAU/UnB. Adora levantamento de campo, espaços públicos e ver gente na rua. Mora em Brasília. ([email protected])
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