A Lei de Responsabilidade Urbana (de novo)

1 de novembro de 2023

Volto ao tema. É necessário persistir. Considero relevante especialmente após o recente tour do urbanista Alain Bertaud por várias cidades brasileiras.

Escrevi sobre a necessidade de uma lei de Responsabilidade Urbana originalmente no jornal El País Brasil em 2015. Depois no jornal O Globo em 2018. Um artigo no Correio Braziliense comentou o assunto em 2023 e citei o tema rapidamente aqui mesmo no Caos Planejado recentemente.

Bertaud está absolutamente correto ao afirmar que precisamos de regulações urbanas mais simples, que coloquemos mais ênfase no domínio público da cidade do que na hiper-regulação do lote privado, e que precisamos considerar a demanda por regiões da cidade, o mercado de trabalho e os preços imobiliários como elementos essenciais do planejamento urbano. Contudo há um desenho político, para além dos conteúdos inerentes à matéria do urbanismo, que devemos considerar para alcançar satisfação maior com nossas cidades.

A importante crítica feita por ele aos planos diretores como cartas urbanas rígidas, muito focadas no longo prazo, mirando desejos sociais, e pouco atentas ao dia-a-dia da prática da governança urbana, com baixa qualidade de evidências, é acertada.

Logo, é sedutora aos promotores imobiliários que conhecem bem as variáveis críticas sobre o ciclo de prospecção, incorporação e produção. E estão sempre constrangidos por normas confusas em cascata, terminando pedindo pela desregulamentação da cidade.

O efeito resultante desse clamor é que cria uma necessidade que os prefeitos entendem que deva oportunamente ser atendida, até porque é de relativa simples execução para aqueles que contam com algum apoio parlamentar, conseguindo agradar o empresariado de suas cidades. Não há falha moral intrínseca nessa premissa, para desespero dos ativistas urbanos, que tratam os planos diretores como jurisprudência urbanística.

Como o tema é complexo, e não simplista, termina ficando de fora da movimentação política o principal alerta de Bertaud: como monitorar a cidade? Pois atenção com o cotidiano, é bem distinto de ser “curtoprazista”, importante dizer.

Creio que essa é a conclusão mais preguiçosa sobre o conhecimento ofertado por Alain Bertaud, pois estamos esquecendo que para organizar, manter e sistematizar dados é fundamental que os órgãos de planejamento urbano tenham institucionalidade respeitada, tenham meios para poder aferir a realidade, manter transparência e boa comunicação sobre a visão e as mudanças de perfil territorial da cidade.

Assim, termina que os planos diretores continuam a ser uma enorme coleção de “o quês” e raramente dizemos “como”. E nunca detalhamos “quem” são os responsáveis. E nesta mecânica, deixamos de lado a responsabilidade dos prefeitos com a efetividade do plano diretor.

É uma contradição que um processo político doloroso resulte em nenhuma implementação. Prefeitos e administrações municipais podem ignorar absolutamente as diretrizes dos planos diretores, até porque estes não são claros sobre metas, indicadores, sobre como dados serão monitorados e sobre como serão abertos ao acompanhamento.

O resultado é sempre o mesmo. Esforço técnico e político de produção de planos diretores, muita cacofonia na sociedade, muita negociação oculta na câmara dos vereadores, o setor imobiliário obtém vitórias pontuais, os acadêmicos urbanos celebram conceitos novos na lei, mas em dez anos ficam todos consternados que a cidade piorou, que a informalidade cresceu, que falta infraestrutura e que os espaços públicos pioraram.

Observemos como a Lei de Responsabilidade Fiscal tornou as condições do debate fiscal mais racional. O tema passa nos telejornais, comentaristas e gestores se dedicam a analisar métricas e criticar desvios. Vejamos como a educação passou a ser pautada por indicadores como o IDEB. Avaliemos como o desmatamento é monitorado de modo granular e as más notícias na área causam enorme desconforto aos líderes políticos.

Ora, a má urbanização, as cidades que não melhoram em trinta anos, não causam incômodo a nenhum prefeito, que pode ser avaliado por vários outros temas, menos pela maneira como perseguiu as metas do plano diretor.

Até porque os planos diretores não definem metas!

É urgente uma Lei de Responsabilidade Urbana. Uma garantia de que tanto os planos diretores sejam mais simples, mais focados em resultado objetivos, explicitando como serão alcançados, como será o agenciamento urbano, como serão os procedimentos de gestão urbana, e que fique transparente que o não alcance dessas metas poderá imputar responsabilidade sobre os prefeitos do período.

Não temais, ó políticos! Se conquistarmos meios pelos quais possamos ser mais eficientes no ordenamento territorial, poderemos entregar o bem viver para as pessoas e elas saberão recompensar com generosos votos.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.

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Arquiteto e urbanista dedicado à reciclagem das cidades brasileiras. Atuou como Secretário de Planejamento Urbano do Rio de Janeiro e presidente do Instituto Pereira Passos e do Instituto Rio Patrimônio da Humanidade. É um Harvard GSD Loeb Fellow. ([email protected])
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