A desapropriação por hasta pública floresce 

27 de fevereiro de 2024

Na medicina, a cirurgia é uma medida drástica, mas por vezes necessária, para salvar o paciente. No urbanismo, o instrumento equivalente é a desapropriação.  

A regulação urbanística, por meio de parâmetros de parcelamento, uso e ocupação, assim como o estabelecimento de incentivos para determinados tipos de empreendimento, são o meio mais comum de indução ao cumprimento dos planos urbanísticos. Há casos, no entanto, em que esses instrumentos não funcionam, levando a situações de lotes abandonados, edificações mal conservadas, assentamentos informais e áreas centrais degradadas.  

A ineficácia do zoneamento se deve a fatores como a omissão dos proprietários ou pendências fundiárias. O instrumento do parcelamento, edificação ou utilização compulsórios (PEUC), previsto no Estatuto da Cidade, com IPTU progressivo no tempo e desapropriação com pagamento em títulos da dívida pública, seria uma opção, mas sua aplicação é lenta, burocrática e depende do orçamento público. Além disso, ao final do processo, o imóvel tem que ser devolvido ao mercado.  

Por que, então, não acelerar o processo e eliminar o intermediário, permitindo que um investidor adquira diretamente o imóvel, sob a condição de lhe dar adequada destinação e oferecimento de uma garantia ao poder público? É o que prevê a desapropriação por hasta pública (leilão), um instrumento que está aos poucos sendo incorporado às legislações municipais, inspirado na figura da “venda forçada” prevista na Lei de Bases da Política de Solos, Ordenamento Territorial e Urbanismo de Portugal

A desapropriação por hasta pública é precedida de decreto de utilidade pública como qualquer outra, mas tem como novidade um edital, que prevê a apresentação de lances, como em um leilão, devendo o adquirente pagar o preço diretamente ao expropriado, por meio de depósito à sua disposição, e não ao Município. É uma desapropriação misturada com alienação, que coloca o Poder Público na posição de planejador, e não de partícipe acidental de cadeias dominiais. Em comparação com a desapropriação tradicional, ela é vantajosa para o proprietário, que não dependerá da expedição de precatório e poderá receber, de imediato, uma indenização de valor superior ao de avaliação (que define o lance mínimo). 

É intuitivo o ganho de eficiência com a simplificação, que também possibilita que a desapropriação ocorra mesmo sem disponibilidade orçamentária, que é desnecessária em uma situação em que será um outro particular que arcará com os custos. 

O potencial deste novo instrumento foi inicialmente percebido pelo Município de Mogi das Cruzes, no interior paulista, que o inseriu em seu plano diretor, de 2019, considerando-o tanto uma modalidade de implementação do PEUC como um instrumento autônomo. De Mogi, o instrumento chegou a São Paulo, por meio da Lei de Regularização Fundiária Urbana, de 2022, e da revisão do Plano Diretor Estratégico do Município de São Paulo, de 2023, vinculada ao PEUC. 

Mais recentemente, por iniciativa de um dos autores deste artigo, no exercício do mandato de vereador, a ferramenta foi incorporada ao novo Plano Diretor do Município do Rio de Janeiro, sancionado em 2024. Na lei carioca, o instrumento está desvinculado do PEUC, podendo ser empregado para regularização fundiária ou renovação urbana, escopo mais amplo que o das leis paulistanas. 

Se, em São Paulo e no Rio de Janeiro, a desapropriação por hasta pública foi pensada de modo geral, no Rio Grande do Sul ela apareceu recentemente como solução possível para um problema bem concreto e com endereço: a necessidade de recuperação da Casa Azul, no Centro Histórico da capital gaúcha, determinada por sentença judicial em ação civil pública. Em fevereiro deste ano, o Poder Executivo enviou à Câmara Municipal de Porto Alegre o Projeto de Lei nº 002/2024, que estabelece normas para a desapropriação por hasta pública deste específico imóvel. 

As variações na implementação do novo instrumento demonstram que foi feita em cada município uma reflexão madura sobre o tema, e não meras cópias irrefletidas de outras leis. É sinal de maturidade do Direito Urbanístico brasileiro, que pode ser essencial para que os diferentes modelos convivam, de modo que aquele que se mostrar, na prática, o mais apto, passe a circular com maior frequência e possa ser incorporado à legislação federal, como já ocorreu com muitos dos instrumentos do Estatuto da Cidade.

Autores:
Fernando Couto Garcia. Mestre e Doutor em Direito pela USP. Procurador do Município de Belo Horizonte. 

Pedro Duarte. Advogado e Vereador no Rio de Janeiro. 

Victor Carvalho Pinto. Coordenador do Núcleo Cidade e Regulação do Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper. 

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.

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