A arrogância do espaço

2 de julho de 2023

“Nem a sociedade mais rica da Terra — os Estados Unidos da América do Norte — conseguiu evitar que suas grandes cidades tenham enormes congestionamentos, mesmo tendo aplicado centenas de bilhões de dólares em avenidas especiais e vias expressas. Isto ocorre por causa de uma barreira insuperável tanto nos países em desenvolvimento como o Brasil, quanto nas sociedades ricas: o uso do veículo automóvel requer um espaço muito grande — 40 m² para circular a 30 km/h em um ambiente urbano – sendo fisicamente impossível acomodar todos os automóveis de uma cidade em situação de alta fluidez. No caso de São Paulo, a presença simultânea de 600 a 700 mil automóveis nas ruas (20% da frota) já é suficiente para provocar um enorme congestionamento.” — Eduardo Alcântara de Vasconcellos

Um argumento comum utilizado por defensores do livre mercado é que a economia não é um jogo de soma zero: você não precisa empobrecer os ricos para enriquecer os pobres; a longo prazo, ambos podem se tornar mais ricos. Isso é bem explicado e pesquisado por Deirdre McCloskey em seus livros e observações sobre os últimos 200 anos da humanidade: hoje em dia, uma família americana de classe média baixa tem um padrão de vida mais alto do que a monarquia francesa. A economia não é um jogo de soma zero… mas a mobilidade urbana é, especialmente em cidades densas.

Você invariavelmente vai ter que tirar espaço urbano de um (meio de transporte) para dar a outro (meio de transporte). É o problema do espaço. Isto é um fato incontornável, é a geometria da mobilidade, como refere Jarrett Walker, e a tecnologia não vai conseguir mudar isso. As ruas das cidades são confinadas e a sua oferta é (quase) inelástica, o espaço público é escasso. Você (quase) não pode criar mais “riqueza de rua”, você precisa otimizar o uso/redistribuir essa riqueza. Para fazer isso, você deve usar a rede de ruas com sabedoria e eficiência. Em termos claros, você deve remover o espaço para carros e dar a outros meios de transporte mais eficientes em termos espaciais.

A questão da eficiência espacial do carro como meio de transporte é crítica, mas pouco discutida. Muito se discute a questão da energia e poluição, pouco a segurança viária e quase nada a ocupação excessiva e gratuita do espaço público pelo carro, tanto parado quanto em movimento. Como eu já referi antes, o carro é um devorador de espaço urbano. As pessoas que usam as calçadas e transportes públicos são muitas e têm pouco espaço, já as pessoas que usam a rua (dentro dos carros) são poucas e têm muito espaço. É muito importante fazer esta distinção que normalmente passa batida: queremos transportar pessoas e não carros ou bicicletas ou ônibus. Esses são só veículos, são os meios de transporte e não o transporte em si!

Quando se atribui muito espaço para poucos (que vão dentro do carro) e pouco espaço para muitos (que vão a pé pela calçada ou dentro dos ônibus) notamos a desigualdade de distribuição de espaço na cidade. É a chamada “arrogância do espaço”, um termo explorado por Mikael Colville-Andersen e nesta ferramenta. Sobre uma série de fotografias aéreas urbanas de várias cidades, Mikael analisa a taxa de pessoas/espaço público para cada meio de transporte. Os resultados refletem as políticas de mobilidade que privilegiam a alocação de espaço público para um meio de transporte em detrimento dos outros.

A distribuição do espaço urbano: uma questão democrática

Muita gente torce o nariz quando ouve as palavras “ditadura do automóvel”. Mas, é isso mesmo. Boas e largas calçadas e uma rede de transportes públicos e ciclovias adequadas servem também para medir os níveis de democracia de uma cidade ou nação. Impor, através da alocação desigual do espaço urbano, um meio de transporte é, sim, uma espécie de ditadura. Liberdade não é poder ir de carro para qualquer lugar, mas sim poder efetivamente escolher, dentre várias opções de mobilidade, e não ser impingido a escolher só uma.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.

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