O ornitorrinco, o Aquaman e as cidades brasileiras

6 de junho de 2024

O ornitorrinco é uma espécie de tomada de 3 pinos que a natureza esqueceu de aposentar.

Único mamífero que põe ovos, o ornitorrinco tem bico como o de um pato (mas é carnívoro), pêlo como o de um castor e produz leite, mas não tem mamas (o leite é segregado do corpo da fêmea através de seus poros). 

As patas têm membranas interdigitais, como o Aquaman, mas as semelhanças param por aí (o Rei dos Mares respira tanto dentro quanto fora d’água, e é totalmente adaptado para os dois ambientes). O ornitorrinco, coitado, tem o corpo adaptado para a água (onde caça e se alimenta), mas dorme e procria em terra, onde se movimenta mal, como uma tartaruga na areia.

É como as cidades brasileiras da atualidade, que se espalham, mas não tem densidade, e nem recursos para levar a infraestrutura para o espalhamento que elas mesmas incentivaram e aprovaram. Nem chegam a ser uma jabuticaba, porque a jabuticaba, embora exclusividade brasileira, funciona e tem futuro na natureza.

O legislador de Pindorama conseguiu a proeza de inventar um ornitorrinco urbano piorado, um ornitorrinco que a tudo devora em seu percurso, trocando terra por pobreza.

O “zoning” é um método de planejamento urbano no qual o território urbano é dividido em zonas com regras distintas, usual e historicamente segregando usos em zonas distintas, criando zonas de um único uso. É Brasília, mas também passou a ser Belo Horizonte após 1976, quando o legislador municipal decidiu que a cidade de múltiplos usos, densa, compacta, segura e com vitalidade teria um outro futuro, com bairros ricos e exclusivos, áreas pobres, setores com áreas de lazer e outros sem nenhuma.

Com as novas regras, com essa nova visão, plantou vento e colheu tempestade, numa cidade espalhada, sem densidade, desarticulada, insegura e cada dia mais pobre e com menos vitalidade. 

A cidade que tinha, até a década de 1960, mais de 70 km de trilhos e uma extensa rede de bondes elétricos, tem atualmente 28 km e 1 linha de um trem de superfície, carinhosamente apelidado de “metrô de superfície”.

Dissonância cognitiva é coisa séria, e quando você precisa explicar a um adulto que, apesar da comparação, enquanto o ornitorrinco é uma realidade, o Aquaman é só um personagem dos gibis e das telas.

Super-heróis são uma projeção de uma realidade desejável, mas não de uma realidade possível. Valem como estímulo, mas não como exemplo ou meta. Entre Brasília e as cidades brasileiras, vale a mesma coisa.

Brasília não é, e nem nunca foi, um modelo viável. Brasília, para existir, exige um volume enorme, constante e eterno de recursos públicos, sem os quais o caos (não planejado) é certeza.

Brasília é a cidade com, possivelmente, a maior taxa de asfalto por habitante, a maior taxa de área pública por habitante, a maior área de lazer por habitante e a cidade com o conceito de “zoning” mais ortodoxo e preservado por mais tempo, no mundo.

Mas Brasília não é um ornitorrinco, como se tornaram Belo Horizonte, São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Curitiba ou Porto Alegre. Brasília é a Disneylândia, onde os heróis ganham vida em superproduções mantidas ao custo de muito dinheiro, e regras especiais.

O resto, coitadas (das cidades e de nós, cidadãos), são apenas ornitorrincos que pensam que são o Aquaman. 

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Caos Planejado.

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