Respondendo a Raquel Rolnik no seu debate com Leandro Narloch
Imagem: Esquina.

Respondendo a Raquel Rolnik no seu debate com Leandro Narloch

Raquel Rolnik e Leandro Narloch participaram de um debate organizado pelo Esquina: Encontros sobre cidades, no tema “Como reduzir o déficit habitacional”. Aqui respondemos alguns dos comentários da Raquel Rolnik, especialmente em questões relacionadas ao mercado imobiliário e à economia urbana.

5 de outubro de 2017

PS: Raquel Rolnik respondeu esse artigo ponto a ponto, de maneira muito atenciosa — e nós publicamos uma tréplica.

Assisti ao debate entre Raquel Rolnik e Leandro Narloch, organizado pelo Esquina, no tema “Como reduzir o déficit habitacional”. Primeiramente, parabenizo a organização e ambos debatedores pela participação. Narloch, apesar de ter pouca bagagem em relação ao urbanismo, participou ativamente do debate e focou sua apresentação em economia e como a concorrência torna produtos mais baratos, neste caso aplicada à habitação. 

No entanto, achei importante adicionar alguns pontos diretamente relacionados a urbanismo, e aproveitar para responder alguns dos comentários da Raquel, que entrou mais a fundo em urbanismo e mostrou uma posição mais conceitual, o que não é tão frequente em seus artigos usuais, que focam em pontos mais específicos.

Acho importante iniciar este artigo dizendo que concordo com boa parte da explanação da Raquel e dos pontos que ela levantou. Concordo plenamente com a crítica que ela faz à política habitacional brasileira focada na ideia da construção da casa, da casa própria e do crédito fácil. O aluguel deveria, sim, estar na pauta de quem busca atender às necessidades de habitação. Gostei muito quando ela comentou que “impor isso [a casa própria] como um padrão único, proibir qualquer outra forma, é impossibilitar de fato que você tenha um atendimento habitacional.”. Ela mencionou os Estados Unidos, que até hoje é movido pelo Mortgage Interest Deduction, e é importante notar que a taxa de homeownership, ou o percentual de pessoas que possuem casa própria, é atualmente a mais baixa desde 1965, principalmente devido aos altos preços nas principais regiões urbanas e às mudanças demográficas e culturais que cada vez menos priorizam a propriedade e cada vez mais valorizam o uso.

Também concordo com a sua crítica à estigmatização e exclusão das favelas. Como muitos leitores já sabem, sou favorável à regularização fundiária e à integração dos moradores de comunidades à sociedade e ao mercado formal. Como Relatora Especial da ONU sobre o direito à Moradia Adequada, Raquel tem sido um exemplo mundial na defesa dos direitos destas pessoas e parabenizo-a pelo seu trabalho nesta frente tão importante.

Minhas discordâncias com o discurso da Raquel iniciam em questões relacionadas ao mercado imobiliário e à economia urbana. Para tornar a resposta mais clara para o leitor deste artigo, vou reproduzir em forma de texto as principais partes da sua argumentação:

“Localização é única e se constitui a partir de um conjunto de investimentos públicos que constituem um lugar, e um conjunto de investimentos privados que estão ao redor, e aí faltou você ler aquela parte do livro de economia que fala do monopólio, porque cada localização é única e não é a mesma coisa (…) de um mercado onde todos esses produtos são iguais e podem estar igualmente disponíveis a todos. Nós estamos falando de um produto muito especial, que se chama terra urbana, a localização, e que ela tem características que impedem que a tua tese de que basta liberar o empreendedor a fazer o que ele bem entender que todos finalmente terão acesso a moradia adequada (…)”

Aqui concordo com a argumentação literal da Raquel de que cada terreno é um pequeno monopólio, já que nenhum terreno é exatamente igual a outro. No entanto, embora um terreno específico seja um monopólio sobre a sua localização específica, as necessidades de moradia podem ser atendidas com uma gama de terrenos muito mais ampla, espalhados pelo centro da cidade. É evidente que existem regiões com mais infraestrutura pública e privada ao seu redor, mas pode-se dizer que existe concorrência suficinte para que diversos empreendimentos sejam construídos atendendo uma gama ampla de pessoas. Apesar de um terreno ser monopólio na sua localização, ele possui substitutos.

Ainda, a tecnologia da construção permitiu que humanidade conseguisse “multiplicar” a oferta de terra na medida em que constrói edificações com índices de aproveitamento maiores do que 1. Se um terreno tem o monopólio de uma localidade e existe muita necessidade de habitação na sua região, um terreno vizinho pode ser transformado em uma edificação gigantesca que atenda a essas demandas. É assim que o efeito da concorrência trabalha para atender a demanda em regiões centrais.

Muitas pessoas culpam os preços elevados dos imóveis em cidades como Vancouver, representada na foto, nos investidores internacionais, argumento usado por Raquel no debate. Mas qual a parcela de culpa real desses investidores? (Foto: Wikimedia Commons)

Em seguida, Raquel argumenta que grandes investidores financeiros, tanto na figura de fundos institucionais quanto em figuras individuais, como plutocratas ou sheiks, compram imóveis para fins puramente especulativos — para servir como um ativo no balanço, como garantia para outros empréstimos. Segundo ela, esses imóveis nem precisam ser usados. Ela termina esta ideia dizendo que “A vacância hoje, em cidades grandes como São Paulo e Chicago, não é uma vacância residual de ciclos de mercado, de jeito nenhum. É um entesouramento, uma espécie de cofre com um pequeno detalhe: o tal do cofre ocupa um espaço que a gente tem pra viver”, dando a entender que boa parte desta vacância é resultado desta especulação deliberada pelos seus proprietários.

Novamente, concordo com Raquel que a taxa de vacância em São Paulo é maior que uma taxa de vacância natural ou residual de mercado e que, principalmente na região central, há uma concentração destes imóveis vagos: são dados acessíveis que não precisam de muito debate. No entanto, questiono a tese principal de que tais imóveis estão vagos por motivos principalmente especulativos. A própria Raquel já mencionou em uma postagem em seu blog que vários dos imóveis subutilizados ou vazios são, na realidade, públicos. Vários desses estão vazios por disputas judiciais, e seus proprietários até gostariam de utilizá-lo ou vendê-lo, mas não conseguem. Outros acabam vazios pela dificuldade de adaptação decorrente de legislações de patrimônio histórico, que conflitam com regulações construtivas atuais ou até mesmo com as necessidades dos usuários. Além disso, vários imóveis antigos se deterioraram no Brasil e acabaram ficando subutilizados pela sua estrutura em propriedade fragmentada em condomínio. No momento em que há uma decisão coletiva a ser tomada por um grande número de moradores que, ao longo do tempo, são substituídos por moradores de menor renda devido à depreciação do imóvel, dificilmente se vê no Brasil incentivos para uma boa manutenção no longo prazo. Tal processo leva muitas vezes, ao longo das décadas, a uma depreciação tão grande que o imóvel se esvazia.

No ponto de vista dos fundos de investimento, nos últimos meses tive a oportunidade de conversar com vários dos principais fundos que investem em imóveis na cidade de São Paulo, e pude ver que são pouquíssimos os que investem em imóveis residenciais. Seus investimentos são, normalmente, em edifícios comerciais e galpões logísticos. Os fundos que investem em imóveis residenciais no Brasil são figuras recentes, e praticamente nenhum deles investe em imóveis residenciais antigos, muito menos para fins especulativos e sem ocupação. Gostaria que a professora comprovasse sua afirmação de que fundos, principalmente internacionais, têm investimentos em propriedades residenciais no Brasil que atualmente encontram-se majoritariamente ou totalmente vazias. Por fim, mesmo que investidores estrangeiros de fato comprassem imóveis residenciais para especulação, um estudo recente mostra que tal impacto nos mercados de habitação que recebem significativo investimento estrangeiro nesse sentido, Nova York e Vancouver, é de um aumento nos preços de apenas 1,1%.

Em seguida a professora cita Houston como referência de cidade sem zoneamento, exemplo prático de uma suposta “teoria neoliberal” sobre cidades — e aqui vemos, na prática, por que a política editorial do Caos Planejado restringe tal uso de palavras na análise de cidades, que causam confusões pelos diferentes entendimentos dos termos. Como já demonstrei em um artigo sobre Houston, baseado principalmente no trabalho do Michael Lewyn, essa cidade é, na realidade, controlada por uma série de regras diferentes de zoneamento, como vagas mínimas de garagem nas edificações e tamanhos mínimos de lotes — e, é claro, é direcionada pela clássica suburbanização americana incentivada pelo governo, com suas grandes avenidas e incentivos a crédito bem mencionados pela Raquel. Mesmo assim, algo interessante ocorreu em Houston a respeito da acessibilidade da cidade, principalmente devido à permissão de potencial construtivo: Houston é uma das únicas grandes cidades americanas que têm custo de vida abaixo da média, e é considerada atualmente uma das cidades com maior diversidade dos Estados Unidos, justamente por ser mais acessível a populações de diversas classes de renda. Ou seja, a cidade não só não é totalmente desregulada, como também não mostra os resultados sugeridos por Rolnik.

A professora também cita os exemplos de Nova York e Berlin como interessantes modelos de controle de aluguéis a serem seguidos. Porém, se uma das preocupações de Rolnik é a desigualdade, é preciso apontar que tais políticas podem até ajudar algumas pessoas que têm sorte de conseguirem locar imóveis dentro destas políticas públicas, mas todos os outros imóveis da cidade se tornam mais caros para balancear o impacto da retirada destes imóveis do mercado habitacional não regulado. Ou seja, a desigualdade aumenta entre quem obtém uma unidade de aluguel controlado e alguém que precisa comprar uma unidade no mercado.

As soluções de cota de solidariedade apontadas, implementadas nos Estados Unidos e no Canadá, têm efeito semelhante na medida em que distorcem a produção imobiliária dividindo-a em duas classes de habitação. Segundo pesquisa de Lance Freeman e Jenny Schuetz, os resultados destes programas também mostram, até agora, que a produção de unidades acessíveis que eles tiveram foi ínfima frente às necessidades que as cidades têm de prover moradia acessível. Isso ocorre porque as unidades muitas vezes não estão dentro das características buscadas por moradores de rendas mais baixas, ou nem mesmo são construídos em zonas onde estas pessoas gostariam de morar, dado que o custo de vida ao redor da propriedade é ainda muito alto.

Rolnik passa algum tempo falando sobre o modelo de desenvolvimento de São Paulo, com o qual eu tenho bastante alinhamento:

“São Paulo claramente, nos anos 30, optou por um modelo rodoviarista, radioconcêntrico, que fez com que a cidade começasse a se expandir loucamente em direção às suas periferias e, em seu tempo, viabilizou, inclusive, a autoconstrução popular lá nos loteamentos distantes, na medida em que esses eixos radiais chegavam lá longe, onde não tinha cidade, e explodiu a periferia, e esse é o fenômeno mais importante do ponto de vista habitacional. O fato de que a gente tem um modelo de exclusão territorial que reservou, através do zoneamento operado pelo mercado, a semelhança e cartografando os produtos imobiliários do mercado, reservou essas áreas mais bem urbanizadas (…) para um mercado imobiliário de mais classe média e um mercado de consumo comercial, de atividade econômica, de mais classe média, e expulsou os mais pobres pra autoconstrução nas periferias.”

No entanto, ao final da sua explanação ela comenta:

“Historicamente as nossas cidades jamais foram guiadas por um planejamento centralizado de especialistas redistributivistas. Nossas cidades sempre foram guiadas pelos desejos do mercado imobiliário que constituíram as estratégias reais de investimentos públicos associados às frentes de expansão pra esses mercados. É essa a história. É uma história muito forte de captura do Estado por certos grupos e por interesses privados absolutamente encastelados.”

É certo que políticas de zoneamento foram capturadas por grupos de elite, como já publicamos em diversos artigos. No entanto, essa afirmação tem um grande problema: o pensamento técnico urbanista hegemônico desde o nascimento das teorias de urbanismo modernas, na sequência da Revolução Industrial até meados da década de 60 (com a introdução de teorias menos centralizadoras por figuras como Jane Jacobs), era rodoviarista e defendia, sistematicamente, o zoneamento e o controle de densidades como forma de planejar a cidade. O exemplo clássico é a própria construção de Brasília, que exemplifica na prática essas teorias, e que não teve participação do mercado imobiliário no desenvolvimento do seu Plano Piloto — que hoje concentra uma das maiores rendas do país e tem seu transporte totalmente baseado no carro. Me parece claro que uma parcela extremamente significativa do desenvolvimento urbano das nossas cidades foi guiada por estes princípios pseudotécnicos modernistas, que Raquel ignora ou dá a entender que foram irrelevantes.

Brasília é um exemplo de cidade que foi desenvolvida sem participação do mercado imobiliário. (Imagem: Wikimedia Commons).

Outro ponto extremamente importante é que Raquel confunde um mercado habitacional que é regulado a partir da captura de interesses de incorporadores imobiliários com um mercado imobiliário menos regulado. Tais realidades são extremamente diferentes. Pressionar políticos a passarem regras e projetos de infraestrutura urbana que beneficiam grupos específicos de incorporadores é muito diferente de ter uma gestão urbana municipal que define regras simples e claras, embora menos restritivas, nas quais incorporadores devem competir, criando infraestrutura pública para a cidade sem focar em uma região específica. Esse segundo formato foi mais ou menos a realidade do desenvolvimento urbano de cidades como Nova York e Paris durante boa parte da construção das suas formas atuais, e é o que argumento que apresento no Guia de Gestão Urbana.

Para terminar, Raquel Rolnik defende maior participação do cidadão no destino da sua cidade, e pergunta “Por que não pode ser uma política construída de baixo pra cima, com as pessoas e a partir das suas próprias iniciativas?”. Talvez tenhamos aqui um ponto de concordância, dependendo da forma como interpretar e de definimos alguns conceitos. Por definição, um mercado é uma rede de trocas onde todos os agentes participam, e não, como ela sugeriu em alguns casos, um coletivo de empresas incorporadoras imobiliárias. No momento que compramos um imóvel estamos sinalizando aos produtores de imóvel que tipo de produto imobiliário estamos disposto a comprar, onde e por qual preço. Somos também parte do mercado. É com esse efeito, como demonstrou Hayek, que ocorre o “uso do conhecimento na sociedade” na produção e distribuição de recursos, utilizando aqui o título do paper que provavelmente lhe rendeu o prêmio Nobel. O que tento defender nos meus textos é justamente a necessidade de verificar de que forma podemos incluir todos os moradores de uma cidade neste mercado imobiliário, para que possam comprar ou vender a sua propriedade livremente, da mesma forma que a Raquel e o Leandro o fazem. Isto pode, ao meu ver, em casos específicos, ser apoiado através de uma espécie de vale-aluguel ou vale-moradia, como ambos Raquel e Leandro defenderam, mas de forma que dê suporte aos moradores sem distorcer a produção imobiliária para que justamente ela possa atender o maior leque possível de unidades para a população de uma cidade.

Espero que a Prof. Raquel Rolnik leia esta resposta com bons olhos e que possamos, talvez, dar um primeiro passo importante para um debate aberto a acessível na “blogosfera” de urbanismo no Brasil.

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