Pela estatização da calçada
Imagem: Daniela Goulart/Flickr.

Pela estatização da calçada

A manutenção privada gera uma noção equivocada de o que significa espaço público, gerando ambiguidade da propriedade.

20 de julho de 2015

A calçada pode ser interpretada de várias maneiras. A primeira coisa que normalmente nos vem em mente é o espaço de circulação de pessoas a pé. Mas a calçada vai muito além disso. Ela é o limite entre o espaço público e o espaço privado.

É nela onde são instalados os equipamentos públicos como paradas de ônibus, postes de luz, hidrantes, bueiros de inspeção, lixeiras e placas de sinalização. É através dela que a cidade se torna mais verde: onde são instalados os canteiros, onde são plantadas as árvores.

Ela muitas vezes também se torna um espaço de comércio, onde ambulantes deixam a cidade mais viva nos oferecendo artesanato local, lanches ou acessórios variados. Algumas cidades permitem que estabelecimentos comerciais usem trechos da calçada para instalar mesas e cadeiras, criando verdadeiros espaços de destino, não de circulação. Alguns cidadãos ainda vivem neste espaço público aberto — os moradores de rua — de certa forma renegados do espaço privado.

Como mostrou a pesquisa do CityFixBrasil, há formatos diferentes de gestão de calçadas pelo mundo. No Brasil, grande parte das cidades tem a via como um espaço de propriedade pública, mas de responsabilidade de manutenção do proprietário do terreno adjacente.

O caso de Nova York é, de certa forma, excepcional (como em muitas coisas) entre países desenvolvidos, seguindo formato semelhante. No entanto, Nova York permite regras simples facilmente implementadas pela cidade inteira, já que se desenvolveu sobre um xadrez viário com geografia plana.

Este não é o caso de cidades brasileiras, que possuem um número interminável de situações diferentes que não encaixam nos padrões das prefeituras (quando eles existem), dificultando o atendimento das regras exigidas.

Em outros países desenvolvidos a via pública normalmente é gerida de forma única, pelo poder público, com a calçada sendo apenas um elemento da via principal de circulação entre os espaços privados.

Algumas cidades brasileiras tentam soluções intermediárias: Porto Alegre, por exemplo, estabelece uma padronização do material usado na calçada (no caso, o basalto) na tentativa de resolver a colcha de retalhos entre proprietários diferentes, mas isso pouco resolve a situação: cada proprietário acaba assentando seu basalto de uma forma diferente, mantendo a irregularidade.

Essa manutenção descentralizada que conhecemos por aqui traz alguns aspectos positivos pontuais, como na criatividade espontânea de proprietários que instalam bancos, floreiras ou até bicicletários de formas inusitadas.

Livros maravilhosos já foram publicados mostrando os diferentes calçamentos de diferentes regiões (ou moradores) da cidade que optaram por padronizações diferentes. O poder público também tem seu papel reduzido e uma economia de custo ao transferir para a iniciativa privada parte da responsabilidade da gestão do espaço público.

No entanto, os aspectos negativos são vários, e o caso pode ser descrito como uma privatização extremamente mal feita: imagine se, quando as empresas de telefonia tivessem sido privatizadas, cada poste, ou cada tubulação da rede, fosse mantido pelo proprietário do imóvel adjacente, sem que pudessem ser vendidos para outras pessoas.

Seria uma gestão amadora, informal, impossível fornecer um serviço contínuo, e muito aquém do potencial da sua infraestrutura: uma situação semelhante à atual da gestão das nossas calçadas.

A manutenção privada gera uma noção equivocada de o que significa espaço público, gerando ambiguidade da propriedade. Não é incomum vermos moradores e comerciantes tratando a calçada como “sua”, atacando verbalmente aqueles que ali permanecem sem a sua autorização, como se fosse propriedade de fato privada.

Afinal, foi ele que pagou para construí-la. Um passeio a pé pela cidade mostrará que seguranças de edifícios de luxo, tanto comerciais quanto residenciais, estão orientados a dispersar aqueles que param em sua frente por muito tempo, ou aqueles que ousam tirar fotos da edificação mesmo estando em um espaço de fato público.

Legislações municipais ambíguas e ações imprevisíveis do poder público também elevam os problemas nesse sistema ambíguo de propriedade. “Proprietários”, por serem gestores amadores, muitas vezes usam pisos não recomendados (e até perigosos) para uso público, já que não é clara a recomendação de material a ser usado — e a fiscalização já precária se torna ainda menos eficiente por este motivo.

É frequente, ainda, a instalação de equipamentos públicos sem notificação ao mantenedor privado, obrigando-o a fazer novos reparos após a obra.

Calçada na Rua Barata Ribeiro, em São Paulo
Calçada na Rua Barata Ribeiro, em São Paulo. (Imagem: Milton Jung/Flickr)

Proprietários do país inteiro criam rampas para a entrada das suas garagens que às vezes canalizam a água da chuva para a calçada do vizinho, eliminam vagas públicas de estacionamento para permitir o acesso a vagas privadas dentro do terreno de um estabelecimento comercial e, o mais grave ainda, geram limitações de acessibilidade ao criar desníveis no passeio. Em São Paulo, é comum a elevação da calçada para proteger o imóvel de inundações, gerando consequências semelhantes.

Na tentativa de corrigir alguns desses problemas, a prefeitura de São Paulo promete revitalizar 1 milhão de metros quadrados de calçadas até o ano que vem — majoritariamente cobrando a execução do setor privado. No entanto, algumas juristas, como Luíza Cavalcanti Bezerra, argumentam que é inconstitucional a cobrança da manutenção das calçadas diretamente pelos cidadãos, dada obrigação jurídica de que isso seja feito pelo próprio poder público:

“No caso específico de bens públicos de uso comum, como as calçadas, o poder de polícia pode servir de fundamento para a vedação do avanço da propriedade do lote para a área correspondente à calçada a ele contígua, como, também, pode proibir o particular de colocar obstáculos no local, como árvores, cadeiras ou mesas.

Não legitima, entretanto, a exigência normativa para que o particular seja incumbido da obrigação primária de construção e manutenção dessas calçadas, porquanto, aqui, o Poder Público não está apenas restringindo o exercício prejudicial de uma liberdade pelo cidadão, mas, sim, está estabelecendo uma obrigação de fazer sem qualquer relação jurídica que a fundamente.”

Se, do ponto de vista jurídico, a situação é irregular, é fácil afirmar que do ponto de vista urbanístico o gestor da via deve ser o mesmo da calçada — ou estar relacionado no seu processo de planejamento. A via entre as edificações é um espaço único de circulação e de permanência de pessoas e deve ser gerida em conjunto com este objetivo.

Há infinitas possibilidades no tratamento dessa fronteira entre a calçada e a via que acabam sendo impossíveis neste sistema ambíguo de manutenção onde essa fronteira não possui dono. A proposta de criar espaços compartilhados, por exemplo, onde é eliminada distinção na via para aqueles que estão dirigindo, pedalando ou caminhando, é muito mais complexa em um cenário onde é necessário enfrentar um proprietário individual que faz a manutenção da “sua” calçada. A calçada, assim, deve ser efetivamente estatizada.

Essa proposta pode ser criticada por alguns como um aumento indevido do poder estatal, que não teria nem capacidade nem recursos para gerir o espaço de forma adequada em grande maioria dos casos. No entanto, colocar a conta nos proprietários adjacentes faz ainda menos sentido já que, assim como a rua, a calçada é usada por todos os cidadãos.

Até aqueles que têm preferência pela gestão privada do espaço deveriam apoiar a estatização pelo menos em primeiro momento, de forma a eliminar a ambiguidade destrutiva da situação atual. Qualquer formato de manutenção em parceria público-privada, por exemplo, para tal objetivo, deveria eliminar a responsabilidade do proprietário para, em seguida, redistribuir o espaço por unidades de gestão, seja em bairros, quadras ou outra unidade maior que um único lote, mas sempre em conjunto com a via principal.

Como disse Jane Jacobs, no seu clássico Morte e Vida das Grandes Cidades: “deve ser nítida a separação entre o espaço público e o espaço privado. O espaço público e o espaço privado não podem costurar-se, como normalmente ocorre em subúrbios ou em conjuntos habitacionais”. Pra variar, ela estava certa.

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  • Muito bom o artigo Anthony! Na minha opinião, é preciso acabar com esta “gestão ambígua”, onde o poder público se exime de sua responsabilidade e o proprietário do imóvel se julga no direito de fazer o que bem entende com sua calçada.
    Sei que é difícil quebrar paradigmas, mas bem que podíamos apelar para o jeitinho brasileiro e adotar uma gestão compartilhada, onde o poder público (re)constrói a calçada e o proprietário do imóvel toma conta. Veja no link a seguir o artigo que publiquei recentemente sobre o assunto: http://caminhada.org/2017/01/31/a-fama-das-calcadas/.

  • Sou simplesmente apaixonada pela Jacobs, confesso que quando coloquei o olho no título do artigo, quis ler só pra ver tinha alguma referência a ela. rsrsrsrs.
    Concordo plenamente que a calçada, deva ser administrada pelos órgão públicos. A imagem refente as rampas é simbólica, na realidade além de tornar o passeio público inacessível,por sua irregularidade ela também deixa uma símples caminhada absolutamente desagradável, fazendo com que seus usuários optem por se deslocar em meio ás ruas. As consequências são a insegurança e o desestímulo ao deslocamento peatonal.

  • Citou Jane Jacobs no final pra mandar aquele fatality, né? Muito bom texto. Concordo que a calçada é um ‘common’ e, como tal, deve ser publicamente administrada(embora eu preferisse que fosse uma fundaçāo, em vez do estado …).