Há 6 milhões de famílias sem casa no Brasil?

Há 6 milhões de famílias sem casa no Brasil?

Guilherme Boulos, candidato à Presidência da República pelo PSOL afirma que no Brasil há 6 milhões de famílias sem casa. Entenda o por que isso não é verdade.

8 de junho de 2018

Guilherme Boulos, candidato à Presidência da República pelo PSOL e colunista da Folha de São Paulo, tem tentado chamar atenção à questão da habitação urbana ao dizer que “há mais casa sem gente do que gente sem casa” no Brasil. Em uma coluna para a Folha que se seguiu ao desabamento do edifício ocupado no Largo do Paissandú, em São Paulo, Boulos citou um número alarmante: seriam no Brasil “6,35 milhões de famílias sem casa, de acordo com o IBGE”.

Se correta, a implicação seria cerca de 18 milhões sem casa no Brasil — ou quase 10% da população brasileira. Este artigo avalia criticamente essas afirmações e discute o que é realidade e o que é mito no debate sobre o défice habitacional brasileiro.

O que é uma “família sem casa”?

Normalmente, quando pensamos em “6 milhões de famílias sem casa”, a imagem que vem à nossa cabeça é a de 6 milhões de famílias em situação de rua, o que, felizmente, não é verdade. Segundo as estimativas mais recentes do IPEA, há 101 mil pessoas em situação de rua no país. É um número preocupante — mas que não é comparável ao número citado por Boulos. Se “pessoas sem casa” fossem pessoas em situação de rua, as estatísticas citadas pelo candidato do PSOL estão bem longe da realidade: distorcem o número real para cima em cerca de 1760%.

De onde saiu o número de “6 milhões de famílias sem casa”?

Boulos usou como base um estudo da Fundação João Pinheiro que tem um conceito bem abrangente de défice habitacional (que, portanto, não foca na população em situação de rua). O estudo inclui como parte défice habitacional qualquer pessoa que se encaixa em pelo menos uma das seguintes características: domicílios improvisados; domicílios rústicos; domicílios em cômodos; domicílios com ônus excessivo de aluguel; domicílios adensados; domicílios em coabitação.

Alguns desses conceitos acima fazem sentido. “Domicílios improvisados”, por exemplo, são coisas como barracas de lonas ou pessoas morando debaixo de viadutos. Poucos discutiriam que isso deve contar para o défice habitacional.

A partir daí as coisas se tornam mais subjetivas. “Domicílios rústicos” são aqueles que têm formas de construção não-convencionais (paredes que não são de alvenaria, teto de palha, chão de terra batida, etc.). Essas construções são comuns no interior do Maranhão, por exemplo. É défice habitacional? Nós diríamos que sim, mas a linha entre desenvolvimento e etnocentrismo é bem tênue. Os estados com maior concentração de comunidades indígenas e quilombolas tendem a ter uma contribuição maior de “domicílios rústicos” para o défice habitacional.

Consideramos os critérios seguintes muito mais polêmicos. Uma família que imigrou para São Paulo (mesmo que seja só um casal) e vive em um cômodo dividindo um apartamento com outros (numa república), isso conta para o “défice habitacional”. Por quê? Porque constituem um “domicílio em cômodo”. É muito mais tênue essa classificação, não?

Outro conceito bem problemático é o de “ônus excessivo de aluguel”. Se uma família com renda de até 3300 reais gasta mais de 30% de sua renda com aluguel, isso conta para o défice habitacional. Independentemente da situação do domicílio da família — o que é problemático, já que pode refletir escolhas pessoais e profissionais da família na alocação de seu orçamento. Talvez a família prefira morar mais perto de seus locais de trabalho e pagar mais com aluguel a morar mais distante e pagar menos.

O penúltimo critério é o de “adensamento excessivo”: se há em média mais de três pessoas por dormitório, isso conta para o défice habitacional. Imagine um casal que mora num apartamento de um quarto com duas crianças. Certamente isso denota recursos limitados. Significa défice habitacional?

Mas o critério mais problemático é o de “coabitação”: quando há mais de um núcleo familiar vivendo no mesmo domicílio. Existe uma miríade de razões (culturais, econômicas, circunstanciais) para isso acontecer. É difícil encaixar isso como “défice habitacional”, especialmente com famílias consanguíneas. Numa anedota, se a mãe da primeira-dama Marcela Temer passar a morar no palácio do Jaburu com sua filha e com Michel Temer, haverá aumento do défice habitacional, pois serão duas famílias conviventes no mesmo domicílio. Faz sentido?

Método de classificação do défice habitacional da Fundação João Pinheiro. Se um domicílio tem qualquer uma das características acima, ele é incluído no cálculo do défice.

Maior problema desse conceito de défice

O maior problema é que a maior parte do “défice” se concentra nesses critérios de coabitação, ônus excessivo e adensamento — em especial nos estados mais ricos. Outro ponto importante é que, dentre as habitações “rústicas”, há uma sobrerrepresentação dos estados que têm mais comunidades indígenas e quilombolas.

Cerca de 50% do “défice” calculado pela Fundação João Pinheiro, nos dados de 2015, corresponde a ônus excessivo do aluguel. Coabitação familiar corresponde a mais 29,9% do “défice”. Por último, adensamento excessivo dos domicílios alugados (mais de 3 pessoas por dormitório) representa 5,2% do défice habitacional.

Esses critérios estão muito longe da ideia que temos quando pensamos em famílias sem casa. Toda essa confusão acaba por tornar mais difícil a compreensão de um problema real, qual seja: qual é a melhor política pública para amenizar limitações habitacionais da população brasileira?

O mapa abaixo mostra a distribuição do défice, por critério, para distintos estados brasileiros.

Distribuição estadual do défice habitacional brasileiro, segundo os critérios da FJP, calculado com dados do Censo de 2010.

Qual deveria ser a prioridade para atuação do governo?

Há dois grupos distintos, tanto em circunstâncias quanto em soluções propostas, que devem ser objeto de políticas públicas: pessoas em situação de rua e pessoas em habitações precárias.

Para os cerca de 101 mil brasileiros em situação de rua, a simples oferta passiva de políticas públicas pode não ser suficiente para que as pessoas vejam sua situação melhorada. Por exemplo, mesmo estando disponíveis serviços gratuitos no Sistema Único de Saúde, há subutilização destes por essa população — porque “profissionais de saúde têm pouca experiência para acolher pessoas em situação de rua e atender as suas necessidades”.

Doar uma casa a cada uma dessas pessoas não necessariamente impediria seu retorno à rua, por motivos diversos e complexos, dentre os quais se incluem questões de saúde mental e vício em drogas. Portanto, para estes é necessária uma estratégia mais ampla e customizada para cada município, que envolva não somente a política habitacional, mas também atenção à saúde e apoio comunitário.

O outro grupo que deveria prioritário na formulação da política pública são aqueles que habitam as habitações precárias (942 mil domicílios dos 6,35 milhões estimados pela Fundação João Pinheiro). Tais domicílios representam riscos à saúde e à vida de seus moradores, pelo risco de desabamento, falta de higiene sanitária, dentre outros.

Dado que a maior parte da necessidade de habitação mencionada acima se concentra em famílias com renda familiar inferior a 2 salários mínimos, e muitas dessas famílias têm renda muito variável entre os meses, uma solução de mercado é bastante difícil nesse caso — ou seja, existe a necessidade de uma atuação por meio de política pública. Como os recursos públicos são escassos, é preciso definir os critérios de défice habitacional de forma mais restrita, de modo a dar prioridade àquelas famílias mais expostas ao risco.

Ao fazer isso, o governo pode focalizar seus subsídios naqueles que realmente precisam. Hoje, o governo subsidia o crédito habitacional de famílias de renda média. Por exemplo, as faixas superiores do Minha Casa Minha Vida são destinadas a famílias com renda superior a R$ 2.600 — ou seja, excluem quase todos os domicílios que estão entre os 40% mais pobres — e existem ainda vantagens tributárias na troca de imóveis que são disponíveis mesmo a famílias ricas. Ao eliminar esse tipo de subsídio, seriam liberados recursos para resolver primeiro o problema das famílias mais expostas ao risco, que, embora representem apenas 2% famílias brasileiras, são uma parcela muito vulnerável.

Conclusão

Não há 6 milhões de famílias sem casa no Brasil. Existem 101 mil pessoas em situação de rua e 942 mil domicílios precários que colocam em risco a integridade física de seus habitantes. Há importantes avanços a serem feitos nas políticas públicas habitacionais. Para tanto, contudo, é essencial focalizar os recursos escassos naqueles indivíduos mais expostos ao risco. Para as pessoas em situação de rua, é necessária uma abordagem mais ampla, que envolva não somente a política habitacional, mas também atenção à saúde e apoio comunitário. Os habitantes de domicílios precários poderiam ser melhor atendidos pelo governo federal pela realocação de subsídios que hoje financiam os com renda relativamente maior para esse grupo prioritário. O número utilizado por Guilherme Boulos, que segue um conceito bem amplo da Fundação João Pinheiro, distorce a magnitude do problema e uniformiza populações em situações bem distintas. Com isso, ao insinuar que cerca de 10% da população brasileira não tem casa, Boulos acaba dificultando a implementação de políticas habitacionais eficientes.

Texto publicado originalmente no site Mercado Popular por Carlos Góes.

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  • Aprendeu a chutar esse número com a alma mais honesta do Brasil e essa “preocupação toda” do “Bolo” deve ser pensando em cobrar aluguel desse pessoal, afinal, para isso esse gangue tem experiência recente.

  • quando que uma família que ganha até dois salários mínimos e vive em um cômodo ou coabitar não é problema de habitação? ela mora (caro$), ela se desloca e come. ótimo ela sobrevive. Fiquei chocada com o artigo. A única coisa que concordei foi que as pessoas que vivem na rua precisam de tratamento adequado, não simplesmente trasladados de um local para outro. A comparação com o ‘digníssimo’ presidente da república eu achei de extremo mal gosto e até diminui a seriedade do artigo.

    • Esta colocação não é verdadeira. O artigo em nenhum momento coloca em discussão o “nível de conforto” de cada tipo de habitação. Óbvio que ganhar dois salários mínimos e dividir um espaço com 05 pessoas não é confortável, mas não se compara com “morar embaixo da ponte”.
      Da mesma forma, e muito bem explorada, a situação etnocêntrica relacionada aos imóveis rústicos. Os mesmos que tanto alardeiam luta para que os quilombolas e indígenas tenham direito a “preservar e perpetuar suas culturas”, são os que classificam a “habitação natural” destes grupos como “habitação rústica” e os colocam como pessoas sem casa. Falta critério ou o critério é a classificação de pessoas e coisas de acordo com a vontade de quem classifica ?

    • Né isso? Liberal esquece que os 6 milhões são um número baseado nas mesmas metodologias de déficit habitacional usadas no mundo inteiro. É óbvio que quem reclama desse número tá muito bem de moradia, obrigado. Mais um caso de projeção elitista.

      • Pedro, o texto não diz que é fácil viver com dois salários mínimos. O texto diz que o governo deve FOCAR nas famílias que não têm casa, que têm uma renda muito inferior a dois salários mínimos. O governo não fica hoje.