Eliminação da exigência de recuos/afastamentos obrigatórios | Guia de Gestão Urbana
Imagem: Walber Moura - MTUR.

Eliminação da exigência de recuos/afastamentos obrigatórios | Guia de Gestão Urbana

A exigência produz torres isoladas, edificações distantes umas das outras e das calçadas, evitando a interação entre pedestre e espaço construído.

15 de setembro de 2017

A exigência de recuos ou afastamentos obrigatórios entre edificações e de edificações em relação à calçada é imposta em grande parte dos planos urbanísticos brasileiros. A principal justificativa técnica desta regra é a garantia de insolação e ventilação adequadas, tanto nos ambientes internos da edificação como no espaço público remanescente.

Recuos obrigatórios
As leis brasileiras atuais exigem que haja recuos entre os edifícios e entre estes e as calçadas, diminuindo o aproveitamento do uso do solo, prejudicando atividades nos térreos e incentivando soluções semelhantes para qualquer terreno. Eliminar tal exigência não impediria os recuos, mas incentivaria a continuidade das fachadas e uma ocupação mais eficiente do espaço urbano.

Tal exigência foi idealizada, inicialmente, com base em conceitos sanitaristas já ultrapassados, sendo o principal deles a teoria da miasma. Por acreditar-se que o “ar ruim” — chamado, então, de “miasma” —, gerado pela ausência de ventilação e insolação era o principal causador de doenças, planos urbanísticos foram pensados para evitar a aglomeração urbana o máximo possível e, entre suas medidas, tentar garantir um espaçamento mínimo entre edificações.

Hoje, embasados na teoria microbacteriana, temos uma compreensão mais clara sobre o que causou a proliferação de doenças em épocas passadas, sendo um fator relevante a falta de saneamento, com a consequente contaminação da água e proliferação de pestes em centros urbanos – e não a simples proximidade de pessoas ou de construções. Atualmente, com saneamento mais adequado nas áreas centrais, não há evidências de que moradores de bairros ou cidades onde os edifícios são colados uns aos outros, apresentando fachadas contínuas, sejam menos saudáveis ou mais suscetíveis a doenças que em bairros onde edifícios possuem recuos laterais ou frontais.

Em defesa dos recuos obrigatórios, também é frequente o argumento de preservar áreas privadas para futuras desapropriações, visando alargamento de vias públicas no futuro. No entanto, faz parte do entendimento atual sobre cidades que tal alargamento viário frequentemente resulta em incentivos ainda maiores ao uso do transporte individual, assunto que é desenvolvido na seção Espaço Público a deste guia.

A exigência de recuos resultou em torres isoladas, edificações distantes umas das outras e das calçadas, dificultando a interação entre o pedestre e o espaço construído. O resultado é o oposto de fachadas contínuas e próximas dos pedestres, que permitiriam ao pedestre fácil acesso às lojas e serviços disponíveis durante o seu passeio. Neste formato último, também conhecido como “fachada ativa”, percebe-se que tais atividades geram um fator de segurança relevante para os pedestres, dada a proximidade entre quem está usufruindo de tais espaços e quem está na rua. Jane Jacobs chamou esse efeito emergente de segurança pública de “olhos da rua”, situação em que os próprios cidadãos exercem um papel de vigilância passiva quando vivem em contato próximo uns com os outros.


Em defesa dos recuos obrigatórios, também é frequente o argumento de preservar áreas privadas para futuras desapropriações, visando alargamento de vias públicas no futuro.


Estudo recente dos urbanistas Vinicius M. Netto, Júlio Celso Vargas e Renato Saboya mostrou que, em ruas em que os recuos laterais, ou seja, os espaçamentos entre edificações, são menores que 2,5 metros, há um trânsito médio de, aproximadamente, 15 pedestres por minuto. Em ruas em que os recuos aumentam para entre 15 e 20 metros, essa frequência é reduzida para três pedestres por minuto. Recuos frontais têm efeitos semelhantes: o trânsito de pedestres é de 11,5 pedestres por minuto quando as edificações distanciam-se da calçada em até 1 metro, e ele é reduzido para 2,3 pedestres por minuto quando os recuos frontais das edificações são acima de 5 metros. Tal resultado torna evidente o impacto que recuos exercem na caminhabilidade de uma determinada rua ou região da cidade.

Por esse mesmo motivo, edificações isoladas acabam sendo menos atraentes para atividades comerciais, desincentivando ainda mais o trânsito de pedestres. Então, com calçadas vazias, onde a presença do pedestre é pequena, edifícios tendem a construir cercas ou muros como medidas de segurança, o que reforça o ciclo negativo desse processo para a caminhabilidade da rua.

Recomendamos, assim, a eliminação das exigências de afastamentos ou recuos obrigatórios dos planos diretores municipais. É importante ressaltar que tal medida não significa a proibição de recuos ou afastamentos nas edificações: empreendimentos que entenderem que um recuo pode gerar benefícios para os seus usuários ou para o entorno devem poder executá-los, se for o caso, mas tal decisão deve ser tomada em um nível privado do empreendimento.

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COMENTÁRIOS

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  • O autor se baseia e exemplos de cidades antigas. Visão de retrocesso, vamos voltar a idade média, com doenças e insalubridade nas edificações. Parece que não aprendemos nada com a epidemia de Covid. É o tipo de mentalidade de quem acha que pode construir edificações sem ventilação e iluminação natural, e depois tentam remediar com iluminação artificial e ar condicionado. Isso se chama “arquitetura burra”. A cidade e as edificações precisam respirar, ter espaço para arborização urbana e espaços verdes, que já está cientificamente comprovado que faz bem para a saúde. É um discurso provavelmente patrocinado pela especulação imobiliária.

    • Parabéns pelo seu comentário. Sou Engenheira Civil, atuo na Engenharia Sanitária e essa “arquitetura burra” que você cita está diretamente relacionada com a saúde pública. Realmente não podemos deixar cair no esquecimento a pandemia que passamos. Os imóveis devem promover saúde aos usuários.

  • Compactuando favoravelmente com a opinião deste conteúdo, sugiro a leitura da dissertação de mestrado de Rodrigo Córdova Petersen: “Arquitetura, forma urbana e legislação em Porto Alegre: a indução tipo-morfológica das edificações”.

  • Olá amigos, vou deixar aqui a minha opinião. De início quero dizer que o espaço em que vivemos deve ser delimitado de forma racional.
    Sou totalmente contra o fim dos recuos, de maneira alguma devemos invadir ou tomar o espaço do outro.
    Um exemplo é, se o proprietário de um imóvel resolver usar o seu recuo ele vai usar a ventilação do vizinho, vai estar próximo à janela do vizinho tirando sua privacidade, e o pior, se os dois ou três resolverem usar o recuo de suas propriedades eles irão ficar sem ventilação, prejudicando o ambiente e saúde.
    O recuo é necessário tanto quanto a taxa de permeabilidade, sem área permeável haveria muitos alagamentos, entupimento dos bueiros e consequentemente doenças e escassez de água já que prejudicaria o ciclo hidrológico.
    O que acontece atualmente mesmo regulamentados os recuos, “sendo maiores do que deveriam ser na minha opinião são pessoas que fazem aberturas ou janelas na divisa invadindo o espaço do outro, há uma lei que proíbe e outra que exime-o de culpa. Há municípios que se pode levantar parede sem recuo em uma extremidade do terreno, porém as vezes ele fica impedido porquê o vizinho abriu uma janela na divisa limitando seu aproveitamento de espaço, como eu disse há lei que proíbe construir janelas a menos de 1,50m do muro de divisa e outra que se o vizinho que abriu a janela após um ano não ser questionado ele pode requerer o direito de mantê-la ali através de usucapião e obrigando o vizinho a não fechá-la com a parede, o que é um absurdo. O que poderia ser tratado com maior lucidez é o limite desses recuos que poderiam ser menores, 1 metro por exemplo que somariam 2 metros de abertura em todas as laterais, isso se os vizinhos respeitarem esse limite, e haver uma lei muito rígida para aqueles que ultrapassarem o limite, com multa e demolição imediata. Essa é minha analogia, devemos preservar o nosso ambiente para que possamos nos manter respirando ar saudável e para isso devemos nos abster de algum espaço.

  • Essa questão do recuo tem que ser vista de forma pragmática, ao retirarmos o recuo frontal para ajardinamento podemos compensar com mais áreas públicas permeáveis, além disso o tamanho da edificação irá influenciar a necessidade do recuo. Uma edifício de 40m deve ter as mesmas exigências de recuo de um de 200m? Não me agrada o modelo de edificações totalmente coladas como já houve no passado, talvez a exigência de um recuo mínimo (1 ou 2m) possa ser a solução.

    • Manuel,

      Obrigado pela leitura e pelo comentário! A exigência do recuo de ajardinamento, caso existir, deve ter um propósito bastante específico e, para isso, tento retirar a subjetividade de quem gosta ou não de uma determinada solução — até porque a não exigência de recuos não significa que eles não seriam feitos: caso uma porção significativa de moradores prefira morar em prédios recuados (e pagar o preço disso), eles ainda tenderiam a ser feitos.

      Os recuos, a torre isolada, foi concebida sob um entendimento equivocado de “miasmas urbanas”. Ou seja, se acreditava que o custo de morar em edifícios colados uns nos outros tinha consequências negativas sanitários muito maiores, que não se concretizaram.

      Atualmente, poderia se considerar, por exemplo, a taxa de insolação do espaço público, como é feito em várias legislações urbanísticas pelo mundo. No entanto, esse efeito não se refere à recuos laterais e tampouco a recuos frontais nos andares mais baixos, mas principalmente ao gradual recuo do envelope do terreno a medida que a sua altura aumenta.

      Anthony

  • Na minha opinião, com o custo do m2 elevado, uma construção que abre mão de metragem construída para recuo torna o m2 mais caro, e portanto a densidade populacional é menor e o uso de veículos maior.Qto maior a renda, maior a utilização de veículos e não há tantos pedestres…

  • meus colegas.
    AFASTAMENTO – o afastamento de prédios énada mais nada menos do que uma medida de vida. Para existir a vida tem de haver sol, ar puro. Os afastamentosw garantem que haja uma melhor insolação e arejamento dos compartimetos de uma habitação ou comercio.
    comecem a imaginar que sem aberturas os cômodos só teriam frequencia se tiverem ar condicinado.
    Nos, que trabalhamos comurbanismo temos de PLANEJAR E PENSAR COISAS BOAS, SOLUÇÕES VIÁVEIS. NADA MAIS IMPORTANTE QUE A POSSE DA TERRA. A moradia, até a mais tosca, é um endereço. Aqui mora FULANO. Essa condição é problena do URBANISTA. Pensar será
    o futuro das cidades.Esqueçam blocos juntos. isso nao é solução. nós somos um país com terras. Temos muito espaço. Eu gostaria de sentar para discutirmos isso e aquele estatuto das cidades que tem coisas boas e coisas comunistas. Sou Católico e não aceito comunismo. Deus acima de todos já disse JB

  • Eu comprei um sobrado, onde eu tenho um terreno como área privativa, meu sobrado fica de lado para a rua, porém, ela é de lado para a frente da rua o qual uso o endereço. A exigência mínima é de 4m de recuo na minha cidade, sendo assim, aquele espaço não posso utilizar como garagem. Existe algum procedimento para se fazer em relação a isso? Posso pedir a eliminação do recuo para construção da garagem? É em bairro, retirado da zona comercial, não existe trânsito de pedestre, nem estrada asfaltada.

    • João, infelizmente não podemos te ajudar com essa questão! Sugerimos procurar as autoridades e legislações locais da sua cidade dado que estas regras variam de um município para outro.

      Anthony

  • Antônio faça uma comparação entre Copacabana e Vargem Grande , por sinal as duas teses do Rogério. Concordo com vc mas acho que o gabarito do encostado não pode ser muito alto . Abraços Davis

  • Afastamentos são importantes, como o comentário apresentado por um colega nesse post, sob o ponto de vista da construção individual. Construções grudadas e sem espaçamentos não deixam espaços necessários a estruturas internas das edificações, como ligações de água, tratamento individual de esgoto… tampouco permitem manutenções nas interfaces: muitas patologias de construções se devem à umidade, e isso é agravado com tantas edificações coladas e sem a impermeabilização adequada. Quando se favorece o espaçamento, a manutenção é melhor e mais simples.

    • João Paulo, confesso que é a primeira vez que vejo este argumento para defender a obrigatoriedade de recuos. Sabe-se que, através da engenharia, estes problemas que você inumera são todos facilmente resolvidos. Tanto é verdade como inúmeras cidades globais (Nova York, Buenos Aires, Barcelona, Paris, Londres, Chicago, Tóquio, Montevideo, San Francisco, Hong Kong, Estocolmo, Madrid etc.) se vê uma estrutura urbana nas áreas centrais predominantemente sem recuos. No entanto, a falta de proximidade das edificações das calçadas, ou seja, das atividades urbanas dos pedestres, é algo que a engenharia ainda não conseguiu resolver em relação à vida urbana e caminhabilidade.

      Att.,
      Anthony

  • Mesmo tendo sido apresentados esses resultados de pesquisas, que não se sabe o critério como foram feitas, pode-se concluí-las por mera observação. Quanto mais afastadas as edificações menor a densidade de transeuntes. Entretanto, em contrapartida a outros fatores como insolação e ventilação, os argumentos não são suficientes para argumentar contra a obrigatoriedade da regulamentação dos afastamentos. Além de aumentar a área permeável do solo, incentivar a mitigação das áreas construídas com áreas ajardinadas e melhorar a sensação de qualidade de vida, essa regulamentação é muito bem vinda para desestimular a selva de pedra. É bem sabido, não apenas por pesquisas já realizadas como também por mera observação que micro climas são criados em regiões de adensamento construtivo, pois os materiais utilizados refletem, acumulam e irradiam o calor gerado pela incidência solar. Acredito que uma regulamentação eficiente e bem planejada possa apaziguar as ânsias de quem deseja adensar o caminhamento e aliviar os espaços entre as construções. Pode-se fazer o que já vem sendo feito, galerias nas bases dos edifícios rodeando os quarteirões e as edificações acima de 12 metros afastadas umas das outras proporcionando todas a benesses de ajardinamentos, permeabilidade, venilação e insolação necessárias à uma boa qualidade de vida, diferenciando-se em demasia do que foi o boom de edificações dos anos 40 até os anos 80 com edifícios colados um ao lado do outro, inclusive para demolição é um dificultador.

    • discutimos uma solução urbana. O que você faria com esse espaço? nada. Tornaria insalúbre o cômodo que a ele tiver acesso. SOL É VIDA. A BACTÉRIA MAIOR COME A MENOR. tem de haver Transpiração. Imaginem essa era do Covid. Esse virus se alastraria. Tem de INCENTIVAR O sol. ele é vitamina.
      O recuo frontal é para insolação. Esse recuo é parte integrante do projeto.
      Os predios antigos como das cidades Européias, na Itália, p/ex. estão no alinhamento, posem o MEIO DE QUADRA, CORTILE, é abeerto e serve de ponto de encontro. Nosso conceito de lote impede colocar uso no MIOLO DE QUADRA.
      O problema de estacionamento ´do rapaz é um problema legal que não previu que o indivíduo pudesse ter um carro. Construir no recuo para por um carro seria a mesma solução que eu desse mandando demolir um quarto ou uma sala para por o carro. Devemos tratar o carro como nosso escravo, não o tratemos como um ser.

    • Oi Max, obrigado pela leitura e pelo comentário.

      Tento comentar ou responder algumas das questões que você levantou.

      Área permeável do solo e áreas ajardinadas: a exigência de recuos/afastamentos é uma exigência diferente da exigência de área permeável em maioria dos planos diretores, pois se referem a coisas diferentes. Edificações podem ser construídas junto ao alinhamento e coladas umas nas outras e, mesmo assim, ter uma área permeável até maior do que uma edificação que exige recuos laterais e frontais. Como? O edifício pode estar na parte frontal do terreno, deixando a parte de trás permeável. Este é o caso das tipologias construídas de Barcelona, por exemplo. Mesmo assim, também considero a questão da drenagem urbana uma de responsabilidade pública, não privada, idealmente utilizando soluções em escala e utilizando a permeabilidade de espaços públicos ao invés de tentar atingir a permeabilidade do solo através dos terrenos privados. Argumentei tal abordagem neste artigo recente entitulado “A solução para as enchentes não é inviabilizar a cidade”: https://caosplanejado.com/a-solucao-para-as-enchentes-nao-e-inviabilizar-a-cidade/

      Ilhas de calor: realmente ocorrem em um ambiente urbano, mas que não tem relação com a exigência de recuos e afastamentos obrigatórios, mas sim com a massa edificada em um determinado território, que não necessariamente a presença de recuos mitigará, vide comentário acima. Mesmo assim, entendo o argumento do efeito da ilha de calor mais uma questão de priorização de quem gostaria de morar em um ambiente urbano do que um problema propriamente dito. Em outras palavras: cidades e aglomerações urbanas terão efeito da ilha de calor, que pode ser mitigado mas, até o momento, reduzido minimamente. Assim, quem gostaria de morar em um ambiente urbano deve fazer a escolha de aguentar 1 ou 2 graus a mais à noite, quando os edifícios irradiam o calor recebido durante o dia. Ambientes não-urbanos, sem efeito da ilha de calor, são abundantes em periferias e zonas rurais. É o ambiente urbano que atualmente é pouco acessível, e não o contrário: curiosamente, mesmo com o efeito da ilha de calor, as pessoas ainda migram para cidades.

      Quanto a sua sugestão final, de bases com torres, isso é muito próximo ao que foi executado em Hong Kong. O que acontece é que nem sempre estas torres acabam tendo boa ventilação, nem sempre mitigam os efeitos da ilha de calor e nem sempre a base oferece comércio interessante para o pedestre. Torres muito próximas umas às outras, mesmo com recuos, tem grandes perdas de ventilação e de vistas, às vezes podendo ser pioradas por esta configuração. Ao mesmo tempo, ao permitir a ampliação da base térreo os comércios se tornaram grandes shoppings que não oferecem vida na rua. Um detalhamento desta urbanização pode ser lido neste artigo sobre Hong Kong: https://caosplanejado.com/urbanizacao-na-china-hong-kong-1/

      É difícil dizer que edifícios colados um do lado do outro produzem intrinsecamente uma qualidade urbana ruim. Tanto nosso próprio exemplo do Centro de São Paulo como cidades clássicas exemplares europeias como Barcelona e Paris; nas Américas, Nova York; e, na Ásia, Tóquio, apresentam edifícios sem recuos laterais ou frontais que oferecem uma vida urbana e qualidade de vida incrível, dado que tem condições de gerenciar e manter adequadamente seus espaços públicos. Lembrando que, como escrevemos neste capítulo do Guia, que também não é necessário exigir que tal continuidade de fachada ocorra, pois é sempre interessante quando algum edifício nos dá alguma surpresa urbana — vide a praça do edifício Seagram, em Nova York.

      Espero que esta resposta tenha detalhado melhor a posição a respeito desse tema e esclarecido um possível mal entendido em relação à proposta. Fico a disposição.

      Anthony

  • Que horror! Emparedamento do bairro, das ruas, de tudo. Saindo de casa estaremos dentro de soluções monetárias hiper lucrativas. Para que serve o sol? a que se presta o vento? Quem precisa de árvores e umidade atmosférica? Tudo é desculpa para as prefeituras corruptas se aliarem a empreiteiras e exterminarem a salubridade e a mais parca noção de natureza nas grandes cidades.

    • Prezada Silvia,

      Acredito que a eliminação da exigência de recuos/afastamentos não signifique que seja proibido construir com recuos para aqueles cidadãos que assim desejam, aproveitando menos o terreno e pagando pelo custo de oportunidade da sua ocupação mais intensiva. Ainda, a opção de menor densidade e com amplos afastamentos sempre estará disponível em locais mais distantes dos centros urbanos. O que a exigência faz hoje não é apenas tornar a moradia menos acessível, inviabilizando uma ocupação mais intensiva do solo, assim como destruir a vida urbana das calçadas, pelos motivos expostos no artigo, mas estabelecer um padrão de preferência único de moradia para toda a população, proibindo aqueles que preferem uma moradia mais acessível e mais caminhável.

      Quanto ao sol e vento, há inúmeras cidades que não exigem recuos (ou, mais diferente ainda, que exigem a construção nas divisas), como Nova York, Paris, Barcelona, Hong Kong, Chicago, Tóquio etc. que provam que é possível uma boa qualidade de vida urbana aliada a tal política urbana.

      Grande abraço e obrigado pela leitura,
      Anthony

  • Bastante esclarecedora a questão de caminhabilidade nas calçadas. Mas quanto a questão da distância entre as edificações não seria importante realmente, pelo menos, uma determinação razoável? Há muitos anos morei num prédio antigo, a duas quadras do mar, mas meu apartamento ficava de frente – e muito próximo – para um outro prédio, o que gerava um calor insuportável. Atualmente, o prédio em que moro é mais novo, portanto, com um afastamento um pouco maior, e a ventilação é muito melhor, mesmo com um prédio na frente.

  • É uma pena que tenham eliminado o recuo das construções em relação às vias públicas , agora as ruas vão passar a virar becos. três pessoas decidem por um milhão. Que pena.

    • Oi Adilson, obrigado pela leitura.

      Na verdade estes recuos não foram eliminados, eles continuam em maioria das leis municipais de cidades brasileiras. O que estamos sugerindo aqui é, sim, a sua eliminação, pelos fatores apontados no texto. Na verdade, o que ocorreu foi o contrário: poucas pessoas decidiram por um milhão quando os recuos foram implementados, a partir de conceitos urbanísticos equivocados e ultrapassados. Antigamente eles não constavam nas nossas legislações, e tínhamos cidades com ruas muito mais vivas e humanas. Infelizmente isso mudou, e é esta vitalidade que queremos resgatar.

      Abs
      Anthony

  • Estas leis que exigem o recuo entre as calçadas e os edifícios são uma exclusividade do Brasil? Ao ver o Google Maps, nas grandes cidades de outros países, não vejo tais recuos.

    • Oi Alexandre,

      Realmente varia de um lugar para o outro. Em cidades como Nova York, uma regra foi instituída acredito que na década de 50 ou 60 que, mediante recuos, seria possível construir mais alto. Isso incentivou o crescimento dos recuos nos prédios da cidade a partir dessa época. Em Tóquio, os limites de altura são mais atrelados à projeção de sombra no espaço público, menos ao terreno em si. Em Hong Kong, atualmente as edificações são divididas entre base e torre (nem sempre foi assim), então os recuos são exigidos para a torre, não para a base.

      De qualquer forma, talvez as cidades brasileiras sejam as piores nesse sentido, com a “pior verticalização do mundo”, como escrevi em um artigo alguns anos atrás: https://caosplanejado.com/cidades-brasileiras-a-pior-verticalizacao-do-mundo/

      É possível que isso tenha ocorrido decorrente da grande influência da arquitetura e urbanismo modernista no Brasil, impulsionado ainda pela construção de Brasília: https://caosplanejado.com/brasilia-uma-cidade-que-nao-fariamos-de-novo/

      Abs
      Anthony

      • Mas o finado World Trade Center de 1973 possuía recuos? No Google Maps. não há nenhum ponto de Nova York que faça lembrar a Berrini ou a Chucri Zaidan.

        • Nenhum ponto de Manhattan se parecerá com essas avenidas de São Paulo porque 1. grande parte da área edificada de Manhattan foi anterior à essa legislação e 2. mesmo com essa legislação existente, os recuos são consideravelmente menores em proporção ao tamanho da edificação comparado com o caso em São Paulo, além de não serem usados em todos os prédios, que é o caso em São Paulo.

          • Se não me engano, parece que há recuos em Jakarta, Dubai, no Centro Internacional de Negócios de Moscou e na Pudong de Shanghai. Será isso não tem a ver com a modernização econômica dirigida por ditaduras políticas que querem desenvolvimento mas com um mínimo de aglomeração de pessoas? Pelo que sei, esta lei do recuo brasileira é de 1972, ano em que havia a ditadura militar.

          • Alexandre, recuos existem pontualmente, como os exemplos que você cita, em diversos lugares do mundo.

            Até onde eu saiba a origem dos recuos está ligado ao início da urbanização pós-revolução industrial, quando cidades começaram a fazer edifícios altos através das tecnologias de concreto armado e do elevador e, logo em seguida, com a grande repercussão do urbanismo modernista, que tinha as torres isoladas como receita de bolo urbano-arquitetônica, no mundo todo. Se você ver projetos de moradia popular no mundo todo, por exemplo, dos Estados Unidos à Europa à Ásia, verás a aplicação desse modelo, embora sejam características de projetos específicos e não de um plano urbano geral. Mesmo Nova York: veja os projetos da Baruch Houses ou de Stuy Town.

            No Brasil a legislação de recuos é municipal, não nacional como você sugeriu no seu comentário. Ou seja, nenhuma cidade tem a obrigatoriedade de exigir recuos nas construções. Meu entendimento é que essa regra se proliferou a partir da construção de Brasília que, de certa forma, validou o modelo modernista nacionalmente, como escrevo neste artigo: https://caosplanejado.com/brasilia-uma-cidade-que-nao-fariamos-de-novo/

            Esta é uma suposição minha, pois é impossível saber o que teria ocorrido caso Brasília não tivesse sido construída. A verdade é que nossas cidades foram extremamente influenciadas pelo modernismo, e os recuos fazem parte disso.

            Abs
            Anthony

  • Infelizmente no Brasil a eliminação dos recuos favorece a a proximidade da rede de distribuição de energia com a edificação, podendo colocar o usuário em risco.

  • Pessoal do Caos, uma dúvida: lendo a famigerada tabelinha de um código de obras, tem uma coluna com a % de área permeável que cada terreno em cada zona deve ter. Eliminar os recuos não afetaria diretamente a permeabilidade? Como lidar com isso? Ou a coleta de águas pluviais via telhados/calhas/galerias acabaria escoando o volume de água mais rapidamente, e evitaria enxurradas? Abraço!

    • você levantou o grande problema de São Paulo. excesso de impermeabilização. Para consertar isso gastariam perto de trinta orçamentos da cidade com desapropriações e canalizaçoes. Esse valor é absurdo e levaria mais de 100 anos para concluir.
      Vocês já pensaram no limite de construções e pessoas por cidade? Há paises da europa que voce pode se mudar de cidade. Toda a vez é necessário um cadastramento de todos que vão para a nova resid~^encia. Fiquem imaginando que muitas cidades tem limitações muito maiores do qe as nossas. Nossa maior limitação é URBANIDADE. Muitos não aprenderam a viver em comunidades. Esse é mais um aspecto do URBANISMO.

  • Excelente, Anthony! Vejo que grande parte dos arquitetos e urbanistas ainda tem grande resistência a eliminação dos recuos. Isso deve-se , parcialmente, a doutrinação modernista massiva em nossas universidades, onde esse conceito é intocável. Como você disse, a justificativa de que os recuos favorecem a salubridade é ultrapassado, mas ainda está impregnado na cabeça de nossos “especialistas”.

  • Parabéns pelo artigo. Meu caro, sou arquiteto e urbanista, especialista em construção sustentável e tenho atuado em planejamento urbano. A continuidade das fachadas sem recuo, ou com recuo técnico mínimo necessário para acessibilidade, estabelece relação de vínculo do privado com o espaço público, uma vez que é a porta da “casa”, e não o muro, que os separa e os une ao mesmo tempo. Um entretanto tenho a propor: o gabarito alto e contínuo desvia e canaliza ventos, favorece a enxurradas e cria uma certa poluição visual, com as devidas considerações, claro. Se propuséssemos um meio termo: continuidade no térreo, diretamente relacionada ao pedestre, e recuos laterais para os andares superiores, a fim de reduzir a pressão dos ventos? Fica a dica.

    • Oi Sérgio, obrigado pelo comentário! Aqui no Caos Planejado não somos muito adeptos ao planejamento da forma das edificações, dado que as necessidades mudam muito ao longo do tempo e que preferimos uma cidade mais dinâmica a estas mudanças.

      A questão que você levantou de canalização de ventos ocorre quando todos os edifícios de uma quadra decidem construir sem recuos. Isto não necessariamente é o caso mesmo com uma legislação que não obriga recuos, já que é facultativo a cada construção. Imaginamos que tal flexibilidade gera mais edifícios com fachadas contínuas mas não na sua totalidade, principalmente para torres mais altas. De qualquer forma, entendemos a preocupação da canalização de ventos e mencionamos ela no artigo. Entendemos que o prejuízo é pequeno perante o ganho no aproveitamento do uso do solo na cidade, principalmente em áreas demandadas.

      Não entendemos o ponto que você levantou sobre as enxurradas, e quanto à poluição visual, é um resultado totalmente subjetivo: algumas pessoas podem preferir edifícios recuados e outras podem preferir fachadas contínuas. É difícil afirmar objetivamente que gabaritos altos e contínuos são intrinsicamente negativos ao olhar humano.

      De qualquer forma, a ideia que você levantou foi implementada de forma semelhante em Hong Kong. O que se vê é uma pressão gigantesca imobiliária na cidade, causada parcialmente por tal subaproveitamento dos terrenos apesar dos edifícios altos. Outro fator que ocorreu, dado que os térreos comerciais são relativamente altos, eles acabaram voltando-se para dentro, tornando-se shoppings ao invés de ter uma conexão aumentada com a rua. Enfim, nem sempre estes planos são um sucesso dependendo de como são implementados.

      Grande abraço,
      Anthony

  • Sou adepto da ideia. No entanto, acho que é necessária uma definição de parâmetros diferenciados aplicáveis para cada tipo de uso. Não apoio o método de zoneamento que temos hoje, com separação de zonas estritamente residenciais, outras comerciais, etc. Mas acho que não devemos abrir mão de parâmetros a serem respeitados para implantação de um determinado tipo de uso. Penso o seguinte: (a) Os afastamentos são condicionantes que ajudam promover iluminação e ventilação naturais aos edifícios e, em alguns casos, se constituem em um fator essencial para viabilizar um partido de projeto bioclimático. (b) Acredito na característica salutar de priorizar o contato dos usuários com o meio externo, como fator que beneficia diversos aspectos da vivência diária das pessoas. Neste sentido, tenho um pouco de receio sobre a afirmativa generalizada de eliminação das exigências de afastamentos, deixando totalmente a cargo do incorporador (iniciativa privada) a definição de aplicação ou não. Entendo que o texto propõe uma ideia inicial e não é taxativo sobre o ponto proposto. No mais, estou muito entusiasmado com os assuntos abordados pelo guia.

    • Oi Weslley! Obrigado pelo comentário. Entendemos que, dentro dessa recomendação, nada impede que o incorporador faça um edifício bioclimático da maneira que ele entenda, pois não estamos propondo uma exigência de continuidade de fachadas (eg ausência de recuos). Estamos apenas propondo que não se obrigue que recuos existam. Como mencionamos no guia, fachadas não-contínuas prejudicam fortemente a caminhabilidade e, assim, trazem danos ainda maiores ao meio ambiente ao incentivar o uso do automóvel como meio de transporte. E é justamente no sentido de promover o aumento do contato das pessoas com o meio externo, ou seja, da fachada com a rua, que damos esta recomendação. Abs!

      • Acho que como sempre cada caso é um caso, as cidades se parecem ao mesmo tempo em que são diferentes, quanto aos afastamentos frontais, (nem quero falar dos laterais) há casos de ruas que se tornaram importantes e tem calçadas mínimas, posso citar alguns trechos do bairro de botafogo no Rio, calçadas com 1m e fluxo intenso de pedestres, nesses casos os afastamento podem propiciar um importante alargamento da calçada, principalmente em áreas comerciais, funcionando quase como praças lineares com bares, restaurantes etc… enfim, muita vida também. fora a arborização urbana que em calçadas estreitas é inviável.

        • Roberto,

          Sem dúvida há necessidade de ampliar e melhorar nossos passeios públicos, nossas calçadas. No caso dos afastamentos, por serem área privada, não são usadas para essa finalidade, sendo um dos grandes problemas desse tipo de política: acabam sendo pequenos jardins internos (na maioria das vezes cercados) com pouquíssimo ou nenhum uso. Alguns dos nossos textos mostram como esses afastamentos prejudicam a caminhabilidade nesses locais: https://caosplanejado.com/a-arquitetura-importa-para-a-cidade/

          Outra forma de olhar para casos como o do Rio é o amplo espaço público utilizado para estacionar carros gratuitamente ou a preços irrisórios, ocupando um valioso e escasso espaço público. A retirada destas vagas de estacionamento também possibilitariam a liberação de espaços para ampliação de calçadas, só para mencionar uma estratégia alternativa.

          Abs,
          Anthony