Há mais casas sem gente do que gente sem casa?
Imagem: Elza Fiuza/Agência Brasil.

Há mais casas sem gente do que gente sem casa?

A ideia de que as "casas sem gente" poderiam facilmente ser usadas como habitação tem sido repetida nos últimos anos. No entanto, a afirmação é pouco realista quanto à possibilidade de uso dos imóveis vazios para habitação.

31 de maio de 2021

Há mais casas sem gente do que gente sem casa? A afirmação recorrente já havia sido descrita como “mito” pelo urbanista Nabil Bonduki em 2018, mas a constante sugestão de uma fórmula simplista para a solução do problema habitacional merece ser mais uma vez respondida. Recentemente, matéria da Folha de São Paulo do urbanista Alexandre Benoit sugere que os aproximadamente 300 mil imóveis vazios em São Paulo poderiam ser destinados para “erradicar o déficit habitacional da cidade”.

A ideia de que as “casas sem gente” poderiam facilmente ser usadas como habitação tem sido repetida nos últimos anos, desde Guilherme Boulos, coordenador do MTST, ao Instituto Polis. No entanto, a afirmação é pouco realista quanto à possibilidade de uso dos imóveis vazios para habitação, fato inclusive não apurado pelo Aos Fatos quando checou as afirmações de Boulos no Roda Viva, focando no lado do tamanho do déficit habitacional, assim como o próprio texto de Luiza Rodrigues e Carlos Goés publicado nesta página, que foca nos critérios de o que significa “pessoas sem casa”, assunto já coberto e que não será o foco neste artigo.

Falando sobre a cidade de São Paulo, segundo o Censo de 2010, a capital paulista realmente tem cerca de 290 mil domicílios sem moradores em um universo de aproximadamente 3,6 milhões de domicílios. Isso resulta em uma taxa de vacância de aproximadamente 8%, próxima do valor de 7,3% levantado pelo Ipea na pesquisa “Retrato das áreas urbanas centrais do Brasil”.

No entanto, cidades possuem uma “taxa de vacância natural”, ou seja, em um determinado momento, sempre há pessoas trocando de um imóvel para outro, com imóveis vazios colocados à venda ou para aluguel. Em um estudo de 53 áreas urbanas globais, o urbanista Solly Angel identificou um valor médio para a taxa de vacância de 4,8%. Outros autores, como Eric Belsky, situam este valor entre 5% e 6,5%. O urbanista Nabil Bonduki resume bem que “abaixo dessa porcentagem, existiria escassez de moradias para compra ou aluguel, com forte elevação dos preços”. Ou seja, pelo menos mais da metade dos imóveis vazios, simplesmente pela necessidade de existir uma taxa de vacância saudável, não poderiam ser destinados para moradia.

Isso não significa que cidades brasileiras não possuam um índice elevado de imóveis vazios. Pegando o mesmo caso de São Paulo, ainda teríamos cerca de 100 mil imóveis vazios acima de uma taxa de vacância saudável para o mercado.

Como mostra o estudo do Ipea, uma maior quantidade destes imóveis vazios nas grandes cidades está localizado nas área centrais, que possuem taxas de vacância muito superiores ao restante da cidade. Em São Paulo, por exemplo, a área central tem 11,6% dos imóveis vazios, valor que ainda caiu significativamente desde o Censo de 2000, onde este valor era de surpreendentes 23,9%.

Inicialmente, uma alta taxa de vacância pode indicar uma baixa demanda para a ocupação do espaço já construído. No entanto, este não parece ser a principal motivação em cidades brasileiras que possuem altíssimo déficit habitacional. O fator que economistas descrevem para a vacância pode estar na chamada “fricção de mercado”, ou “custos de busca, imperfeição de informações e custos da burocracia que incapacitam o ajuste do mercado somente pelos preços”, como descreve Vanessa Nadalin para o Caos Planejado. É possível que a sofisticação gradual do mercado imobiliário brasileiro seja parcialmente responsável pela queda nas taxas de vacância em praticamente todas as grandes cidades brasileiras, assim como nas suas regiões centrais, entre 2000 e 2010. O Brasil possui um mercado imobiliário menos desenvolvido e menos sofisticado que países desenvolvidos, o que significa menos informações disponíveis sobre imóveis e processos negociais e transacionais demorados e burocráticos que aumentam a dificuldade de compra de um imóvel e o tempo que ele permanece vazio, aumentando a vacância. Outro fator relevante é que o aumento do estoque imobiliário nas regiões centrais de capitais como São Paulo, inclusive devido à consolidação dessas regiões, foi muito inferior ao crescimento populacional, pressionando a ocupação dos imóveis vagos.

Vista aérea do Centro do Rio de Janeiro. (Imagem: Riotur.rio)

Além disso, o que pode contribuir para a vacância nas áreas centrais é a dificuldade de conversão de imóveis para novos usos, não apenas do ponto de vista do custo técnico para a reforma mas também para conformar estes novos usos de acordo com a legislação. Do ponto de vista construtivo, pesquisa de Daniela Veiga citada por Bonduki indica que “um quarto dos domicílios classificados pelo censo do IBGE como vagos estava sem condições de habitabilidade”. Pesquisa coordenada pela professora Luciana Royer também já indicou que parte dos imóveis vazios notificados “jamais poderiam ser reformados e virar moradia”. A legislação urbana também, muitas vezes, é empecilho ao invés de incentivo à reutilização. Segundo o arquiteto e urbanista Rogerio Cardeman, o Rio de Janeiro restringiu o uso residencial na sua área central na década de 70, consolidando no Decreto 322/76, e apenas em 1994 liberou novamente pela Lei 2236. Em Porto Alegre, o IV Distrito foi zoneado como industrial em 1959 e apenas em 1999 teve seu uso reclassificado como “misto”, permitindo diferentes ocupações dos imóveis, muitos já em estado de degradação. Cidades como Porto Alegre, Rio de Janeiro e São Paulo tem promovido, nas últimas gestões municipais, planos para reocupar e revitalizar suas áreas centrais.

Estes imóveis vazios certamente poderiam contribuir para a redução do déficit habitacional (que, como lembram Rodrigues e Goés, não necessariamente significa “pessoas sem casa”). No entanto, o déficit habitacional em São Paulo segue aumentando, tendo dobrado na Região Metropolitana nos últimos 10 anos de acordo com estudo da FGV, sendo um crescimento ainda mais intenso comparando o valor de 230 mil moradias divulgado pela Agência EBC em 2015 com as 474 mil moradias do estudo da FGV de 2019, embora os valores possam ter diferentes metodologias de cálculo. A própria matéria do Estadão que usa a cifra dos 290 mil imóveis sem moradores divulga o dado de um déficit habitacional de 712 mil famílias vivendo em condições precárias, embora não cite diretamente a fonte.

Quando se fala em imóveis ociosos que estão efetivamente abandonados, subtilizados ou terrenos sem edificações, São Paulo apresenta um número próximo de 1385 imóveis, conforme apurado pelo G1 em 2018, ou seja, um número alto olhando de forma independente mas, comparado não só com o déficit mas com o universo total de imóveis vazios, ainda pequeno.

A redução da taxa de vacância, assim, é de difícil implementação e tem potencial limitado para enfrentar o déficit. Infelizmente, apesar da ociosidade de imóveis se apresentar como um problema em cidades brasileiras, principalmente nas áreas centrais, é difícil afirmar que “há mais casas sem gente do que gente sem casa”, apesar de ser ter forte apelo para alertar sobre os desafios habitacionais no Brasil. No entanto, como já disse o urbanista Nabil Bonduki, o “mito das casas sem gente não resolverá o problema da gente sem casa”.

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